Da sopa ao gel: a revolução científica por trás dos meios de cultura

A microbiologia é uma ciência tão antiga quanto a demora em sua compreensão. Mesmo fazendo parte do dia a dia de todas as sociedades e épocas, sempre foi difícil de ser vista e comprovada. No entanto, dois grandes avanços permitiram seu reconhecimento: o primeiro microscópio sofisticado e um método para cultivar microorganismos.

É improvável que alguém negará os créditos dos microscópios, aparatos cheios de tecnologia e destreza. No entanto, que importância tão relevante podem ter meios de cultivo que têm como precedentes uma “sopa”?

Experimento de Pasteur onde ele utiliza um caldo nutritivo semelhante a uma sopa para provar a necessidade de um meio de cultivo para o crescimento de micro-organismos. Fonte: Apresentação: Origem da Vida, Lázaro Henrique.

Louis Pasteur, em 1860, foi o primeiro a utilizar um meio de cultura para crescer bactérias em um laboratório. O meio era composto por extratos de leveduras, açúcar e sais de amônio. Em 1882, Robert Koch conseguiu colorir bactérias causadoras da tuberculose usando corante azul de metileno e calor. Dois anos depois, Hans Christian Gram criou a coloração de Gram, método vastamente utilizado até hoje para diferenciar bactérias a partir da composição de sua parede celular.

Em meios a tantas descobertas e confirmações da existência desses seres microscópicos, uma nova revolução ocorreu: o surgimento da placa de Petri, em 1887, desenvolvida por Julius Richard Petri. Este material simples permitiu a multiplicação das formulações de meio de cultura, que podiam ser testadas e avaliadas facilmente para estabelecer qual o melhor ambiente nutricional para cada micro-organismo.

Junto veio a substituição da gelatina por um componente peculiar: o ágar, um polímero extraído de algas marinhas vermelhas e que fazia parte da dieta japonesa. A gelatina foi o primeiro agente solidificante utilizado em meios de cultura mas trazia a grande limitação de se liquefazer a 23 ºC, tornando-se um meio de cultura líquido e impossibilitando a seleção e contagem de micro-organismos. Já o ágar é insolúvel em água fria mas expande-se quando a absorve em maiores temperaturas. Tem como principais características ser atóxico, não fermentável, fonte de fibras e sais minerais, além de manter-se como um gel firme em temperatura ambiente, permitindo a formação de meios sólidos.

O uso do ágar possibilitou a cultura de inúmeros materiais vivos como células animais ou vegetais, plantas, fungos e bactérias em meios sólidos que, ao contrário dos líquidos (“caldos”), permitem a identificação e isolamento de culturas puras para posterior estudo e replicação. Com isso, vários agentes patogênicos foram descobertos e doenças elucidadas, assim como tratamentos e curas. Hoje o ágar é o ingrediente essencial para quase todos os meios de cultura conhecidos.

Analogia entre a sigla inglesa UFC em referência ao combate físico entre lutadores e a sigla em português que remete ao combate psicológico em contar centenas de colônias em placas de Petri e sem perder a contagem! Fonte: Science Blogs.

Os avanços levaram a formulações com diferentes especificidades e cada vez mais completas. Hoje, a cultura in vitro de micro-organismos conta com três grupos principais de meios sólidos:

  • Meio nutriente ou enriquecido: mais generalistas e para isolamento primário de micro-organismos, contém um grande suprimento de nutrientes para promover o crescimento de quaisquer espécies que possam estar presentes na amostra.
  • Meio seletivo: permite o crescimento de determinados micro-organismos e inibe o crescimento de outros, sendo um meio para seleção. Geralmente faz-se o uso de antibióticos específicos como agentes inibidores.
  • Meio diferencial: identifica micro-organismos ou um grupo deles no meio de cultura. Neste caso, são utilizados principalmente cromógenos e fluorógenos para produzir alterações características ou padrões de crescimento que diferenciam os micro-organismos de interesse. Quando esses componentes têm seus substratos degradados por enzimas específicas do micro-organismo desejado, alteram a cor ou levam à fluorescência deste no meio, permitindo uma conclusão rápida e a olho-nu da sua existência.

É importante salientar que esses meios não são mutuamente exclusivos, ou seja, um meio seletivo pode ser também diferencial ou enriquecido.

Um meio vastamente utilizado para cultivo de fungos em geral é o Ágar Sabouraud Dextrose. Criado por Raymond Sabouraud em 1892, possui em sua composição alta quantidade de açúcar, fonte de energia para o desenvolvimento dos fungos mas não para a maioria das bactérias que não o toleram em níveis elevados. Seu pH levemente ácido (~5,6) também ajuda a inibir o crescimento bacteriano que é estimulado em pH neutro (6,5 – 7,5). Este meio é principalmente favorável ao crescimento de fungos dermatófitos, ou seja, causadores de infecções de pele, como micoses, sendo bastante difundido na indústria farmacêutica e cosmética.

Meio Ágar Sabouraud ideal para crescimento geral de fungos e leveduras apresentando diferentes espécimes possíveis em uma única placa. Fonte: Reino Fungi

Outro meio interessante é o Ágar-sangue, bastante utilizado na microbiologia clínica, já que possui em sua composição 5% de sangue de carneiro, permitindo avaliar a atividade hemolítica de micro-organismos. Este é um exemplo de meio enriquecido e diferencial, onde é possível identificar bactérias do gênero Streptococcus, classificando-as de acordo com seu grau de hemólise.

Meios de cultura caracterizando, da esquerda para a direita:  Streptococcus pneumoniae, responsável por hemólise parcial ocorrendo na zona cinza-esverdeada; estreptococos beta-hemolíticos, responsáveis por hemólise total, ocorrendo na zona transparente ao redor da colônia; e estreptococos não-hemolíticos, caracterizados pela ausência de hemólise e não modificação do meio ágar-sangue. Fonte: Anvisa.

Já o Ágar MacConkey é um meio seletivo que favorece o crescimento de bactérias gram-negativas, possuindo em sua composição ácido biliar e cristal violeta, substâncias que inibem o crescimento de bactérias gram-positivas em geral. Este meio é também diferencial, já que as bactérias gram-negativas que se desenvolvem podem ser fermentadoras ou não de lactose (lac+ e lac-). Linhagens fermentadoras são caracterizadas por colônias vermelhas ou rosadas circundadas por uma área de precipitação ácida da bile; já as linhagens não fermentadoras são brancas ou incolores. É o meio mais antigo usado para cultivo de enterobactérias desenvolvido e publicado por MacConkey pela primeira vez em 1900. Bastante difundido nas indústrias farmacèutica e alimentícia.

À esquerda há colônias lac+ rosa avermelhadas, devido à produção de ácido pela degradação da lactose, havendo absorção do vermelho neutro e mudança na coloração por conta da queda do pH. À direita encontram-se colônias lac- incolores, devido à utilização de peptona ao invés da lactose para a fermentação, levando à formação de amônia, que eleva o pH do meio, deixando-o amarelado. Fonte: Medimicro, disponível em Domínio Público via Wikimedia Commons.

Os meios sólidos tem a grande vantagem de se destacarem pelas mais interessantes técnica de visualização do micro-organismo. Por exemplo, o meio Ágar Endo Les (Lawrence Experimental Station)  é utilizado na avaliação da qualidade da água identificando coliformes totais. Este meio combina sulfito de sódio com fucsina básica apresentando coloração rosa que se torna pink com a fermentação da lactose e o crescimento de colônias de brilho metálico dourado. Já o meio Ágar Cetrimida é bastante utilizado no isolamento de Pseudomonas aeruginosa, bactéria comumente associada à infecções hospitalares. Muitas cepas produzem pigmentos fluorescentes como a pioverdina responsável por um tom esverdeado e a piocianina por um tom azul quando expostas a radiação ultravioleta. Por outro lado, o Ágar Baird-Parker se utiliza de gema de ovo em sua composição para o isolamento de Staphylococcus aureus, vilão do envenenamento alimentar. O crescimento de colônias pretas é resultado da redução de minerais e a formação de uma zona opaca em volta é devido à ação da lecitinase e lipase da gema.

Meios de cultura endo les, cetrimida e Baird Parker, respectivamente. Fontes: Merck, Biomedicina Padrão, EO Labs

Incrível tudo que resultou de uma simples sopa, não? Sem o desenvolvimento e aprimoramento desses meios, muitos dos avanços que temos hoje, sobretudo na área da infectologia e controle microbiológico, não seriam possíveis. Parece que uma sopa pode revolucionar o mundo!! E você, sabia de todas estas características e história dos meios de cultura? Já utilizou algum ou conhece outros meios interessantes? Conta pra gente!

Referências:

http://www.anvisa.gov.br/servicosaude/controle/rede_rm/cursos/boas_praticas/modulo4/intr_stre.htm

http://www.kasvi.com.br/meios-de-cultura-diferenca/

https://www.biomedicinapadrao.com.br/2011/11/guia-meios-de-cultura-para-bacterias.html

http://www.bd.com/resource.aspx?IDX=9572

Power, David A., and Mary Jo Zimbro. 2003. Difco & BBL manual: manual of microbiological culture media. Sparks, MD: Difco Laboratories, Division of Becton Dickinson and Co.

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