Produtos biotecnológicos sintetizados a partir da microbiota intestinal

Parece estranho, mas a maior parte do nosso corpo não é humana! E não só do nosso corpo, como também de outros mamíferos. Segundo matéria da BBC, mais de metade do que compõe nossos organismos são microrganismos que, ao invés da crença popular de nos trazerem apenas infecções e doenças, desempenham importantes papéis em nossos organismos, como proteção contra hospedeiros, auxílio na digestão e diversos outros benefícios.

Nos últimos anos, a população de bactérias, vírus e fungos que vivem dentro do corpo humano ganhou tal importância dentro do meio científico que passou a ser tratada como uma única comunidade, a microbiota (ou microbioma, microflora e flora). Embora seja impossível vê-la a olho nu, a microbiota é parte relevante do nosso organismo e do seu respectivo funcionamento. Dentre a importância da microbiota em números, temos que só a população de microrganismos no trato gastrointestinal humano seja composta por, no mínimo, 100 espécies de bactérias conhecidas. O total do número de genes somados chega a ser 150 vezes maior que o do genoma humano.

Não só em nós, humanos, mas também nos mamíferos como um todo, o trato gastrointestinal é um dos lugares preferidos dos microrganismos, possuindo uma abundância relevante em relação aos outros órgãos. Quando tomamos aquele “leite fermentado” com gostinho de infância e outros prebióticos e probióticos estamos, na verdade, repondo e estimulando o crescimento de apenas algumas das muitas espécies que habitam nosso sistema digestivo.

Além das funções citadas, são constantes as pesquisas que buscam descobrir novas funções e novos papéis da microbiota em nosso organismo. Apenas uma fração da microbiota intestinal foi cultivada até agora, o que torna ainda mais importante investigar a “matéria escura” microbiana, que é uma fonte promissora para a descoberta de novos potenciais biotecnológicos.

Diante de todos esses aspectos, é possível deduzir que, por trás de populações tão ricas de microrganismos, existe um banco genético enorme. E sabemos que, se há um banco genético rico disponível, com certeza há uma possível aplicação para a biotecnologia. É aí que entra um ponto que tem ganhado destaque nas pesquisas científicas: a microbiota intestinal possui uma grande capacidade para biossintetizar quantidades relevantes de metabólitos com as mais diferentes estruturas, e com uma variedade de atividades biológicas que prometem substâncias preciosas para a biologia e para a medicina, como drogas e outros candidatos a medicamentos.

Escherichia coli, bactéria presente na flora intestinal. Foto: Janice Haney Carr / CDC

Já se sabe, por exemplo, que a microbiota intestinal é capaz de interferir na forma como alguns medicamentos agem em nossos organismos. Estudos já apontaram que o microbioma pode impedir o funcionamento ótimo de medicamentos anticâncer e também representar um alvo para melhorar, modificar ou reverter a eficácia dos medicamentos atuais para o diabetes tipo 2. Assim, a interferência da flora intestinal sobre os medicamentos pode ser uma oportunidade para ampliar o estudo de doenças por meio da inserção ou da modulação de populações de microrganismos que habitam um organismo.

A revisão lançada recentemente por Wang et al. aponta que a própria forma com que esses organismos interagem com os medicamentos indica que a microbiota possui substâncias específicas responsáveis por mediar essas interações. Desta forma, uma melhor compreensão dos mecanismos dessas interações levou a um maior interesse com relação à produção de importantes moléculas pela microbiota, como metabólitos secundários, que são compostos sintetizados por um organismo e que não estão diretamente envolvidos em suas funções vitais, fazendo parte do que entendemos como produtos naturais.

A revisão levanta, de forma bem abrangente, abordagens de obtenção de produtos naturais sintetizados por várias espécies diferentes de microrganismos da flora intestinal, dando destaque à situação das pesquisas, ao que já foi descoberto até agora e como aconteceram essas descobertas.

Alguns exemplos de importantes substâncias produzidas por meio do metabolismo secundário de microrganismos. Fonte: E-disciplinas USP. Elaboração: a autora

A maioria dos produtos naturais até então caracterizados, derivados desses compostos,  são proteínas, ou “tijolinhos” que formam as proteínas – os peptídeos – e possuem principalmente função antibiótica. Tal fato levanta não só a questão de uma produção mais sustentável de antibióticos, como também uma alternativa contra a resistência a eles, tornando possível, assim, a formulação de novos medicamentos eficientes e abrindo uma nova fronteira nas indústrias farmacêutica, agrícola e alimentícia. Outro papel importante da descoberta de produção dessas substâncias é saber de que forma elas interferem junto a outras drogas e descobrir métodos terapêuticos baseados na interação microbiota – drogas – prebióticos – probióticos.

Outros compostos classificados como metabólitos secundários, como fenóis, alcalóides e carotenóides, possuem ampla aplicação industrial e comercial, de modo que sua produção por microrganismos da flora intestinal possa se tornar mais uma descoberta que busca a produção maior e mais sustentável dessas moléculas.

Embora existam diversos estudos mostrando que é possível a obtenção de produtos naturais por meio de microorganismos que habitam a flora intestinal, ainda é necessário traçar estratégias de viabilizar a síntese dessas substâncias. Os pesquisadores apontam diferentes formas de entender melhor as sequências de genes relevantes que apontem para a produção de compostos comercialmente interessantes e, assim, buscar formas de produzi-los em maior escala. Os microrganismos produzem diversos metabólitos para mediar interações significativas e funções fisiológicas de sobrevivência, porém, na perspectiva de proporcionar benefícios aos seres humanos, existem numerosos agrupamentos genéticos e funcionais distintos.

Portanto, podemos concluir que explorar os mecanismos de novos compostos em vários níveis e perspectivas é fundamental para garantir a segurança e o valor das aplicações clínicas dos produtos sintetizados pela flora intestinal, como a investigação da classe dos compostos, farmacocinética, farmacodinâmica e seu modo de ação, bem como seus efeitos na estrutura e função de o intestino humano. Assim, o que espera é que, no futuro, sejam utilizadas abordagens mais eficientes e viáveis para não só entender o funcionamento do microbioma, como também utilizá-lo na formulação de produtos comercialmente viáveis.

Por enquanto, talvez o mais importante seja entender que, em se tratando de produção de novos compostos por seres vivos, parece não haver limites para a biotecnologia e que até mesmo a cura e o tratamento de doenças e infecções pode, literalmente, estar dentro de nós mesmos.

Referências:

BBC. Brasil. A maior parte do seu corpo não é humana – e é nova aposta de cientistas para vencer doenças. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43716220. Acesso em: 03 jan. 2019.

Metabolismo de microrganismos: fungos e bactérias. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1134575/mod_resource/content/0/Teorica%207%20-%20Metabolismo%20fungos%20e%20bact%C3%A9rias%202016%20a.pdf.Acesso em: 03 jan. 2019.

Revista Saúde. Microbiota intestinal: cada vez mais importante. Disponível em:

https://saude.abril.com.br/blog/alimente-se-com-ciencia/microbiota-intestinal-cada-vez-mais-importante/. Acesso em: 03 jan. 2019.

ScienceDaily. Wake Forest Baptist Medical Center. Gut microbiome may affect some anti-diabetes drugs. Disponível em: https://www.sciencedaily.com/releases/2018/12/181211122445.htm. Acesso em: 03 jan. 2019.

Wang et. al. Natural Products from Gut Microbiota. Disponível em: https://www.cell.com/trends/biotechnology/fulltext/S0167-7799(18)30278-6#%20. Acesso em: 03 jan. 2019.

Revisado por Rodrigo Cano e Thaís Semprebom

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