O DNA é a molécula responsável por armazenar nossas informações genéticas. Essas informações irão coordenar o desenvolvimento e o funcionamento do metabolismo de todos os seres vivos, além de transmitir as características hereditárias para as novas gerações. O ambiente “natural” do DNA é o interior das células, sejam elas eucariontes ou procariontes. E nos eucariontes, ele ainda está protegido dentro do núcleo celular, reflexo da importância das informações que essa molécula carrega.
Mas você já ouviu dizer que existe DNA fora da célula (Cell-free DNA)? Até pouco tempo se imaginava que não, porém hoje já sabemos que sim, ele existe e pode ser útil em várias aplicações.
Cell-free DNA
O DNA livre de células (cf-DNA, do inglês cell-free DNA) é todo fragmento de DNA que não está encapsulado dentro de células, livre na corrente sanguínea. Esse DNA tem origem na apoptose ou necrose de células e, em geral, deveria ser “limpo” pelos macrófagos. No entanto, estima-se que a quantidade de células morrendo nos tecidos seja maior do que a capacidade de limpeza dos macrófagos e por isso, uma parte desse DNA acaba indo para o plasma sanguíneo.
A maior parte do cf-DNA encontrado na corrente sanguínea é de células da própria pessoa, no entanto, também são encontrados DNAs de origens diferentes. Por exemplo, em pessoas que passaram por transplante de órgãos, o DNA do órgão transplantado pode representar de 2 a 12% do total de cf-DNA na corrente sanguínea. Em mulheres grávidas, 7 a 10% do cf-DNA é na verdade do feto e em pacientes com câncer até 0,1% do cf-DNA é proveniente das células cancerígenas. Além disso, a infecção por patógenos pode ser detectada em 0,001% do cf-DNA.
Condição | cf-DNA | Porcentagem na corrente sanguínea |
cf-DNA da própria pessoa | Maior porcentagem | |
Pessoas que receberam órgãos transplantados | cf-DNA do doador | 2 a 12% |
Mulheres grávidas | cf-DNA do feto | 7 a 10% |
Pacientes com câncer | cf-DNA das células cancerígenas | 0,1% |
Pacientes com infecção por patógenos | cf-DNA do patógeno | 0,001% |
Esse conhecimento possibilitou que o cf-DNA fosse utilizado na detecção precoce de rejeição de órgãos transplantados e de câncer, além da realização de diagnóstico pré-natal não invasivo com alta sensibilidade e precisão. Vamos falar de cada um desses exemplos detalhadamente.
1 – Rejeição de transplantes
O transplante de órgãos é, em muitos casos, a única possibilidade de sobrevivência para pessoas que sofrem com o mau funcionamento irreversível de órgãos vitais, como o fígado, os rins e o coração. No entanto, é uma cirurgia complexa e o paciente que é submetido a ela corre muitos riscos. Uma das principais preocupações é a rejeição do órgão transplantado.
A rejeição do órgão transplantado ocorre quando o sistema imunológico do hospedeiro identifica aquele órgão como estranho ao organismo e começa a combatê-lo. Essa rejeição pode acontecer de maneira hiperaguda (em poucos minutos após o transplante), aguda (a partir de dois dias após o transplante) ou crônica (até meses depois). Alguns dos principais sintomas da rejeição hiperaguda são febre, náusea e mudanças bruscas na pressão arterial. Nos outros tipos de rejeição, os sintomas irão variar de acordo com o órgão transplantado. Em todos os casos, o paciente pode vir a óbito se não houver uma intervenção rápida.
Existem estratégias para evitar que a rejeição aconteça, como o estudo de compatibilidade entre receptor e doador e a supressão do sistema imunológico (através do uso de medicamentos) para que ele não ataque o novo órgão. No entanto, em alguns casos essas estratégias não são suficientes e o organismo do paciente pode rejeitar o órgão recebido. Por esse motivo, é necessário que haja acompanhamento do paciente, a fim de se detectar o mais rápido possível se o órgão transplantado está sendo rejeitado ou não.
O cf-DNA tem se mostrado bastante eficaz como biomarcador para essa detecção precoce dessa rejeição. Pesquisadores da Universidade Okayama (Japão) realizaram um estudo com pacientes que haviam recebido transplante de pequenos enxertos de pulmão e perceberam que os níveis de DNA livre de células derivado de um doador de órgão (dd-cf-DNA) aumentaram significativamente na corrente sanguínea de pacientes com rejeição aguda (aumento de 12%).
A rejeição aguda é caracterizada pela falta de oxigenação do enxerto e caracteriza o sofrimento do órgão, ou sua rejeição. As células sem oxigênio passam a morrer e liberar seu DNA na corrente sanguínea do paciente. Os pesquisadores foram capazes de detectar a rejeição do enxerto transplantado através do dd-cf-DNA imediatamente e em até 72 horas após o transplante.
Outro estudo realizado na Universidade Kyung Hee (Seul, Coréia do Sul) utilizou a detecção de DNA mitocondrial (mtDNA) para diagnosticar a rejeição aguda em pacientes que receberam transplante de enxerto de rim. Participaram do estudo 85 pacientes e a amostra de sangue e de urina foi coletada 17 dias após a cirurgia. Aqueles pacientes que apresentavam rejeição aguda tiveram níveis do mtDNA livre de células aumentados em relação aos pacientes sem complicações. Esse aumento se correlacionou com a função retardada do enxerto, ou seja, o órgão transplantado não desempenhou suas funções normalmente.
2 – Detecção de câncer
A detecção precoce dos mais diversos tipos de câncer também é crucial para garantir que o tratamento seja bem sucedido. O câncer de próstata, por exemplo, é a neoplasia mais comum em homens e, embora já existam biomarcadores para sua detecção, eles em geral não detectam cânceres mais agressivos. Por isso, o cf-DNA tem sido estudado como possível biomarcador para esses casos em que o diagnóstico tradicional não é tão eficaz.
Neste tipo de câncer de próstata, o tamanho do fragmento de cf-DNA liberado na corrente sanguínea foi correlacionado com a gravidade da doença e pode ajudar a diferenciar entre os pacientes saudáveis e com câncer de próstata localizado. No entanto, a principal função do cf-DNA neste caso foi ajudar no diagnóstico de pacientes com câncer de próstata metastático resistente à castração, aquele que se espalha pelo corpo mesmo após a remoção da próstata.
O câncer de pâncreas é uma doença de difícil detecção e que costuma ser diagnosticada já nos estágios tardios, quando as terapias curativas tem pouca eficácia. Foi descoberto que uma das principais causas desse câncer é a metilação de determinados genes relacionados ao desenvolvimento e função do pâncreas. A metilação é um processo de adição de um grupo metil (-CH3) à molécula de DNA e impede a transcrição daquele gene. Um estudo realizado pela empresa Bluestar Genomics demonstrou que a metilação do cf-DNA de pacientes com adenocarcinoma ductal pancreático (PDAC) é maior do que em pacientes saudáveis e foram capazes de detectar a doença em seu estágio inicial.
3 – Diagnóstico pré-natal não invasivo
Algumas síndromes e doenças também podem ser detectadas mesmo antes do bebê nascer. A mais conhecida talvez seja a síndrome de Down, tendo como características crianças/adultos com olhos amendoados, hipotonia muscular, menor estatura e desenvolvimento físico e intelectual mais lento.
No que diz respeito ao aspecto genético, a síndrome de Down é caracterizada pela trissomia do cromossomo 21. Em geral, nós seres humanos temos apenas 2 cromossomos 21, um herdado do pai e outro da mãe, mas em alguns casos, a criança pode herdar 2 cromossomos de um dos genitores, normalmente da mãe, e acabar somando 3.
O diagnóstico pré-natal da síndrome de Down pode ser sugerido pelo ultrassom morfológico fetal e confirmado pelo exame de amniocentese e amostragem das vilosidades coriônicas. No entanto, os testes padrão possuem uma taxa de falso positivo de 5,4%, ou seja, em 5,4% dos fetos, o teste padrão diagnóstica o bebê com a síndrome de down erroneamente.
Em 2015, foi publicado um estudo que utilizou o cf-DNA proveniente do feto, que circulava na corrente sanguínea da mãe e foi possível diagnosticar a síndrome de Down em 100% dos casos, com taxa de falso positivo em apenas 0,06% dos casos. Enquanto isso, o teste padrão diagnosticou apenas 78,9% dos pacientes portadores da síndrome. Fica claro, portanto, que o teste com cf-DNA é mais sensível e preciso.
Ao longo do trabalho, os pesquisadores puderam também detectar fetos com trissomia do cromossomo 13 e do 18 através do cf-DNA com maior precisão comparado aos métodos tradicionais. A detecção precoce dessas síndromes pode auxiliar os pais a se preparar melhor para chegada do bebê e também a procurar estratégias de acolhimento como conversar com pais que já passaram pela mesma situação.
O cf-DNA poderia parecer algo impensável, mas graças ao seu descobrimento estamos conseguindo melhorar o diagnóstico de muitas doenças, detectando-as mais precocemente e de maneira menos invasiva. Vamos ficar atentos ao que ainda descobriremos sobre nosso genoma e como poderemos utilizar essas informações para a criação de novas formas de diagnóstico e tratamento.
Cite este artigo:
MEDRADES, J. 3 aplicações do cell-free DNA. Revista Blog do Profissão Biotec, v.8, 2021. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/aplicacoes-do-cell-free-dna/ >. Acesso em: dd/mm/aaaa