Arqueologia, história e biotecnologia: disciplinas que se cruzam para explicar o passado

Já imaginou em como a genética e a biologia molecular podem ser aliadas dos historiadores? Leia aqui como elas podem ajudar a explicar fatos históricos.

Você já imaginou em como a genética e a biologia molecular podem ser aliadas dos historiadores? Essas ferramentas, além de analisar semelhanças genéticas entre organismos do passado e do presente, podem ajudar a resolver mistérios e explicar fatos históricos. Os conhecimentos atuais sobre síndromes genéticas também podem nos dar outra visão sobre o comportamento de líderes tiranos, a queda de casas reais e outros mistérios, por exemplo.

As recentes técnicas de sequenciamento de nova geração, hibridização de DNA e  extração de DNA de ossos ajudam historiadores e arqueologistas a entender melhor o passado. Essa mistura entre biotecnologia e história ganha vários nomes em campos de estudos: genética forense, bioarqueologia, arqueogenética, entre outros.

Passado distante

Fonte: poliroberty900/Pixabay

O estudo de populações tem se beneficiado muito do sequenciamento de DNA. A descoberta de que a camada óssea do crânio ao redor do ouvido continha boas quantidade de DNA mesmo em esqueletos pouco preservados foi fundamental para novas análises. Antes, os pesquisadores se baseavam principalmente em objetos que indicassem a migração através de marcas culturais de cada povo. O sequenciamento do material genético nos esqueletos contribui para esclarecer dúvidas e criar teorias mais acuradas.

Um dos casos é a nova explicação sobre a chegada do povo de Luzia (fóssil humano mais antigo encontrado na América do Sul) às américas. Considerando que os primeiros povos humanos provavelmente surgiram na África, muitas teorias existem sobre como o povo de Luzia teria chegado à terras brasileiras. A primeira delas diz que as essa população seria descendente de povos que migraram do leste asiático através do estreito de Bering. Outra teoria é de que a migração seria muito antiga e que viria diretamente de uma população que saiu da África e cruzou a Ásia. A descoberta dos esqueletos em Lagoa Santa (MG) fez a segunda teoria ganhar força. As medidas de crânio do povo que viveu a mais de 11 mil anos indicavam uma descendência Africana.

Em 2008, a análise de DNA quebrou esse paradigma. Descobriu-se que o povo de Luzia tinha um genoma mais semelhante aos outros povos indígenas das américas. Tudo indica que este povo esteve ligado à mesma leva migratória que as outras populações americanas, descartando a ideia da migração mais antiga.

E não é só com a espécie humana que a genética pode ser utilizada para desvendar mistérios ou recontar a história. Espécies extintas podem ser relacionadas às atuais pela análise de seu DNA. A análise genética pode também ajudar na explicação de  processos evolucionários e o ambiente do passado. Mudanças bruscas em alguns padrões genéticos em fósseis podem ajudar a predizer grandes extinções e a migração de populações no passado.

Os dramas da realeza

Fonte: Free-Photos/Pixabay

A genética pode também ajudar a explicar comportamentos estranhos e a falta de herdeiros nas casas reais europeias. Um caso famoso é o do rei Henrique VIII. Ele foi o segundo monarca da casa Tudor e um personagem histórico importante. Também foi protagonista na fundação da igreja anglicana e em diversos conflitos entre países. Um fato marcante do seu reinado foi a dificuldade para assegurar um herdeiro ao trono, o que custou a vida de algumas de suas esposas. Apesar das 6 diferentes esposas e inúmeras amantes, o rei teve apenas três filhos, sendo um único herdeiro homem.

Na pesquisa conduzida pelas bioarqueologistas Catrina Whitley e Kyra Kramer, uma hipótese para os problemas do rei foi levantada. Henrique VIII seria portador de um grupo sanguíneo raro: o kell positivo. Esse tipo sanguíneo seria o responsável pelos diversos abortos de suas esposas e pelo comportamento tirânico do rei na meia idade. Os abortos são explicados à reação imunológica das mães ao feto kell positivo, causando a síndrome hemolítica do recém-nascido. Em alguns casos, portadores desse antígeno desenvolvem também a síndrome de McLeod, que causa distrofia muscular e problemas neurológicos, o que explicaria o comportamento do rei. Infelizmente nenhuma análise genética dos restos mortais pode ser feita para comprovar a teoria.

Outro caso famoso de especulação genética é o do rei Carlos II, último rei da dinastia de Habsburg da Espanha. Ele morreu muito jovem, devido a complicações de saúde, e sem herdeiros. Os estudiosos indicam que a dinastia teria acabado devido aos muitos casamentos consanguíneos na família. O rei seria portador de uma série de alterações genéticas que resultaram na sua incapacidade intelectual e problemas de saúde. Em 2009, um grupo de pesquisadores avaliou a teoria do ponto de vista genético. O rei sofria muito provavelmente de duas doenças recessivas simultaneamente, o que é bem raro e deve ter ocorrido pelos casos de consanguinidade na família.

Uma lenda desmistificada em 2008 pela análise genética é a da possível sobrevivência de herdeiros da família imperial russa: os Romanov. A família imperial russa foi executada em 1918 pelo exército bolchevique. Os corpos do czar Nicolau II, de sua esposa Alexandra e de seus cinco filhos foram enterrados escondidos. Em 1991, uma cova foi encontrada e corpos dos pais e de apenas três filhos foram encontrados e identificados. O caso aumentou os murmúrios de uma lenda urbana de que a princesa Anastásia teria sobrevivido. Em 2007, outra cova foi encontrada com dois corpos. Pesquisadores então utilizaram análise de DNA mitocondrial e identificação de algumas sequências nucleares para a identificação dos membros restantes da família.

Amostra de sangue em camiseta do czar Nicolau II utilizada para comparação com o DNA das ossadas. Fonte: Morozova et al, 2008.

Novos dilemas

Fonte: geralt/Pixabay

Os estudos históricos se beneficiam muito com a novas tecnologias de identificação de DNA e sequenciamento. Enquanto até 2013 pouquíssimos genomas humanos antigos haviam sido sequenciados, só em 2017 foram mais de 500. Mas ainda existem grandes dificuldades nesse campo. Existem atritos dentro da comunidade acadêmica entre estudiosos contra e a favor das técnicas. Algumas críticas são com relação à interpretação dos dados e à ética. Críticos afirmam que o número de esqueletos analisados ainda é pequeno e que as marcas culturais são mais importantes.

Outro problema trata do financiamento e da formação de parcerias. Como é um campo de estudo muito recente, muitas instituições ainda não possuem políticas para a análise desse DNA arqueológico. Pesquisadores em arqueologia normalmente não possuem a estrutura e o conhecimento necessário das técnicas de biologia molecular. E encontrar parceiros para colaboração nem sempre é fácil. Além disso, para que os esforços sejam somados e grandes descobertas sejam feitas é preciso que arqueologistas e geneticistas encontrem uma linguagem comum. 

A interdisciplinaridade é realmente intrínseca ao mundo da biotecnologia. Você conhece outras disciplinas que usam ferramentas biotecnológicas? Conta pra gente!

Texto revisado por Carolina Vasconcelos e Thaís Semprebom

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