Inicialmente, é importante contextualizar o que é o cultivo celular. Trata-se de um conjunto de técnicas que permite a remoção de células de um tecido animal ou vegetal e seu subsequente crescimento em um ambiente artificial, chamado de ambiente in vitro. Desde seu estabelecimento, no início de 1900, até os dias atuais, o cultivo celular tem se tornado uma ferramenta vital para as ciências biológicas. Tanto para a pesquisa básica quanto para aplicações como tecnologias de fertilização, fabricação de vacinas, e produção farmacêutica e terapêutica.
As condições de cultivo para diferentes tipos de células podem variar bastante (Figura 1). Mas basicamente as necessidades principais envolvem o uso de um frasco adequado para permitir o crescimento e o uso de um meio de cultivo. De modo geral, os meios básicos contêm aminoácidos, vitaminas, ácidos inorgânicos e fontes de carbono como a glicose. Além disso, as células precisam que outros elementos sejam adicionados como, por exemplo, fatores de crescimento e adesão, hormônios, lipídeos e proteínas transportadoras. Nesse contexto, o soro fetal bovino fornece esses elementos e é comumente adicionado ao cultivo em uma concentração entre 5% a 20%.
Por que o soro fetal bovino?
No final dos anos 50, o soro fetal bovino (SFB ou FBS do inglês “fetal bovine serum”) passou a ser utilizado para estimular o crescimento de células. Hoje sabe-se que além disso, o soro tem componentes que são essenciais também para adesão, proliferação e manutenção das células. O soro é a fração líquida do sangue coagulado. No processo de coleta, ele é depletado de células, fibrina e fatores de coagulação. Estima-se que mais de 4000 metabólitos são encontrados no soro. Sendo assim, ele é uma fonte abundante de todos os elementos adicionais que as células necessitam.
Embora existam outros soros animais, o soro fetal bovino é o mais utilizado devido seu baixo conteúdo de imunoglobulinas e poucas proteínas do sistema complemento. Seu uso garante um dos mais robustos sistemas de cultivo para uma ampla variedade de tipos celulares. O crescimento celular na presença de soro fetal bovino de qualidade é tipicamente rápido e consistente. Além disso, ele protege as células de grandes mudanças de pH, de forças de cisalhamento e da ação de proteases ou outros agentes que normalmente afetariam a monocamada de células aderentes.
Como é o processo de obtenção do soro fetal bovino?
O soro fetal bovino é preparado com sangue coletado de bezerros não nascidos (fetos) durante o abate de vacas. Importante destacar que esse processo só pode ser feito em instalações licenciadas que atendam às regulamentações federais vigentes. O sangue é coletado por punção cardíaca e refrigerado para estimular a coagulação. Após isso, ele é centrifugado e o fluido remanescente é o soro fetal bovino. O mesmo ainda é filtrado para garantir níveis seguros de esterilidade. Para assegurar qualidade e prevenir a degradação, uma vez processado, o soro é estocado e transportado em condições controladas.
Todo esse processamento precisa ser cuidadosamente monitorado para reduzir o risco de contaminação. Fornecedores confiáveis garantem um sistema de qualidade robusto e seguem normas de boas práticas de fabricação. Vários testes precisam ser feitos para demonstrar a qualidade e segurança desse material,
incluindo a mensuração dos níveis de endotoxinas e hemoglobinas. Além disso, é preciso demonstrar ausência de contaminantes como micoplasma e vírus específicos.
Agências governamentais estabelecem padrões e regulamentos para a indústria de soros animais. E também impõem critérios para importação e exportação de subprodutos animais. Além desse controle, existe a International Serum Industry Association (ISIA, Associação Internacional da Indústria de Soros), uma organização mundial que tem como objetivo garantir a padronização, regulamentação e rastreabilidade para a indústria global de soro animal (Figura 2). A associação concede uma certificação, com base em uma auditoria independente, que é um selo importante para identificar fornecedores comprometidos com os mais altos padrões de qualidade.
Então, por que para algumas aplicações precisamos de alternativas para o soro fetal bovino?
Devido às vantagens mencionadas acima, o soro fetal bovino se tornou um suplemento universal. Contudo, debates sérios têm acontecido tanto no campo científico quanto ético sobre sua utilização. O principal desafio metodológico está relacionado com a composição variável e não definida do soro, que varia de lote a lote. A variabilidade sazonal e geográfica em relação à produção do material em si é outro ponto de atenção, pois gera flutuação tanto na disponibilidade quanto no preço do produto final. Do ponto de vista ético, existe todo o debate sobre a redução do uso de produtos de origem animal e o próprio sofrimento animal envolvido na obtenção do soro.
Assim, pensando em reprodutibilidade, segurança e aspectos éticos, as aplicações abaixo são exemplos de áreas onde existe uma busca ativa por alternativas ao uso do soro fetal bovino.
- Produção de proteínas recombinantes de interesse farmacêutico
Células em cultura podem ser utilizadas como fábricas biológicas para produção de proteínas de interesse. Resumidamente, através da técnica de DNA recombinante, um gene alvo é inserido no genoma dessa célula, e a mesma utiliza sua maquinaria celular para produzir esse gene. Esse processo conduzido em larga escala é utilizado para produção de várias proteínas de uso terapêutico como por exemplo os anticorpos monoclonais (Figura 3).
Nesse caso, principalmente a variabilidade no crescimento e proliferação das células relacionada ao uso do soro fetal bovino levaram ao desenvolvimento de meios de cultivo livres de soro. Também, a presença do soro impacta no processo de purificação das biomoléculas. Outro fator negativo é o custo, pois pensando em produção em larga escala, uma grande quantidade de soro passa a não ser economicamente interessante. Importante destacar que um ponto que facilitou o desenvolvimento de meios alternativos sem soro é o pequeno número de diferentes linhagens celulares utilizadas para produção industrial. Assim, o desenvolvimento desses meios foca estritamente nas necessidades nutricionais e de processos dessas células.
- Terapia Celular
Nas diferentes abordagens da terapia celular, as células propriamente ditas, ou bioprodutos derivados, são injetados diretamente em um paciente. O objetivo é o tratamento ou prevenção de doenças. Essas terapias são uma grande promessa terapêutica para doenças complexas. Atualmente, as abordagens de terapia celular podem ser divididas em duas categorias: aquelas baseadas em células tronco e aquelas baseadas em células do sistema imune (Figura 4).
Para essas aplicações, a grande preocupação, além da eficácia e qualidade da terapia, é a segurança. Assim, novamente o uso do soro fetal bovino tem impacto importante na variabilidade da produção das células. Mas, além disso, pode impactar na imunogenicidade e na possibilidade de transmissão de doenças devido à presença de príons, bactérias ou vírus. Assim, as agências reguladoras ao redor do mundo indicam que para essas aplicações o uso de produtos de origem não-animal é preferencial. E como estamos falando de poucos tipos celulares específicos, cada vez mais existem meios livres de soro e com suplementos alternativos para quando se tem interesse no uso terapêutico dessas células.
- Cultivo de carne in vitro
Essa é uma área de interesse crescente no Brasil e no mundo. O objetivo final é a produção da chamada “carne de laboratório” que como o próprio nome já diz, seria a produção de proteína animal sem envolver o abate direto de animais. O processo se inicia com a coleta de células do animal, utilizando métodos não invasivos. A partir daí, células tronco são manipuladas em laboratório para darem origem às células musculares, células de gordura e assim por diante.
Um dos pontos chaves do desenvolvimento desse processo é a substituição do soro fetal bovino. Ora, se um dos objetivos é um produto que gere menos impacto ambiental e que seja mais sustentável, o uso em larga escala de produtos de origem animal não faz muito sentido. Assim, muitas alternativas têm sido consideradas como suplementos de origem vegetal, por exemplo. (Figura 5).
nu et al, 2021.
Contudo, o processo tecnológico para produção de carne de laboratório ainda precisa de maturidade para sair da biofabricação de gramas e chegar à marca de toneladas. Seguindo essa tendência, o que já temos disponível no mercado é a carne vegetal, um produto feito à base de proteínas de origem vegetal (grão de bico, ervilha, soja). E também nesse contexto a biotecnologia está presente agregando soluções para melhorar o produto final.
Para finalizar, atualmente muitos tipos celulares já podem ser cultivados em meios livres de soro fetal bovino. Contudo, vale destacar que ainda não existe uma alternativa única capaz de substituir o soro fetal bovino como suplemento para todos os tipos celulares. Assim, esse tema ainda deve render boas discussões e desenvolvimentos tecnológicos pelos próximos anos.
SOBRE O AUTOR:
Jenifer Nowatzki – Bióloga, com mestrado em Biologia Celular e Molecular pela UFPR e doutorado em Bioquímica Médica pela UFRJ. Trabalhou também como pesquisadora em startup de inovação radical na área de proteínas recombinantes. Atualmente é especialista técnica de produtos na ThermoFisher Scientific, responsável por temas relacionados ao Cultivo Celular.
Texto produzido em parceria com a ThermoFisher Scientific.
Cite este artigo:
NOWATZKI, J. Avanços nas aplicações do cultivo celular: o uso de soro fetal bovino está com os dias contados? Revista Blog do Profissão Biotec, v.10, 2023. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/avancos-nas-aplicacoes-do-cultivo-celular-uso-soro-fetal-bovino-dias-contados/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
REFERÊNCIAS
BANDARANAYAKE, Ashok D. & ALMO, Steven C. Recent advances in mammalian protein production. FEBS Letters. V.599, p. 253-260, 2014.
CHELLADURAI, K.S. et al. Alternative to FBS in animal cell culture – An overview and future perspective. Heliyon. V.7, e07686, 2021.
HANDBOOK CELL CULTURE BASIC – GIBCO 2021. Acesso em PDF Request Form | Thermo Fisher Scientific – BR.
HSU, Li-Jie et al. An alternative Cell Therapy for cancers: induced pluripotent stem cell (iPSC)- Derived Natural Killer Cells. Biomedicines. V.9, n.10, 2021.
LI, Wifeng; FAN, Zhenlin; LIN, Yan; WANG, Tian-Yun. Serum-Free Medium for Recombinant Protein Expresion in Chinese Hamster Ovary Cells. Frontiers in Bioengineering and Biotechnology. V. 9, 2021.
MUNTEANU, Camelia et al. Can Cultured Meat be an Alternative to Farm Animal Production for a Sustainable and Healthier LifeStyle? Frontiers in Nutrition. V. 8, 2021.
VAN DER VALK, Jan et al. Fetal Bovine Serum (FBS): Past- Present-Future. ALTEX. V.35, n.1, p.98-118, 2018.
WITZENEDER, Karin et al. Human-derived alternatives to fetal bovine serum in cell culture. Transfus Med Hemother. V. 40, n.6, p. 417-423, 2013.
Fonte da imagem destacada: ThermoFisher.