Avanços nas aplicações do cultivo celular: o uso de soro fetal bovino está com os dias contados?

O soro fetal bovino é um suplemento universal para o cultivo celular. Mas, por que ele é utilizado? Como é obtido? E por que para várias aplicações buscamos alternativas?

Inicialmente, é importante contextualizar o que é o cultivo celular. Trata-se de um conjunto de técnicas que permite a remoção de células de um tecido animal ou vegetal e seu subsequente crescimento em um ambiente artificial, chamado de ambiente in vitro. Desde seu estabelecimento, no início de 1900, até os dias atuais, o cultivo celular tem se tornado uma ferramenta vital para as ciências biológicas. Tanto para a pesquisa básica quanto para aplicações como tecnologias de fertilização, fabricação de vacinas, e produção farmacêutica e terapêutica

As condições de cultivo para diferentes tipos de células podem variar bastante (Figura 1). Mas basicamente as necessidades principais envolvem o uso de um frasco adequado para permitir o crescimento e o uso de um meio de cultivo. De modo geral, os meios básicos contêm aminoácidos, vitaminas, ácidos inorgânicos e fontes de carbono como a glicose. Além disso, as células precisam que outros elementos sejam adicionados como, por exemplo, fatores de crescimento e adesão, hormônios, lipídeos e proteínas transportadoras. Nesse contexto, o soro fetal bovino fornece esses elementos e é comumente adicionado ao cultivo em uma concentração entre 5% a 20%.

Imagens ilustrativas de células em cultivo.
Figura 1. Imagens ilustrativas de células em cultivo. Os pesquisadores usam microscópios invertidos com contraste de fase para acompanhar o crescimento e saúde das células. #ParaTodosVerem As imagens demonstram células com formatos alongados ou arredondados com as bordas brilhantes em um fundo cinza. Em A e B temos células HEK293 de crescimento aderido em monocamada. Em C e D temos a mesma linhagem adaptada para crescimento em suspensão. A e C objetiva de 10X, B e D objetiva de 20X. Adaptado de Cell Culture Basics Handbook/Gibco Education.

Por que o soro fetal bovino? 

No final dos anos 50, o soro fetal bovino (SFB ou FBS do inglês “fetal bovine serum”) passou a ser utilizado para estimular o crescimento de células. Hoje sabe-se que além disso, o soro tem componentes que são essenciais também para adesão, proliferação e manutenção das células. O soro é a fração líquida do sangue coagulado. No processo de coleta, ele é depletado de células, fibrina e fatores de coagulação. Estima-se que mais de 4000 metabólitos são encontrados no soro. Sendo assim, ele é uma fonte abundante de todos os elementos adicionais que as células necessitam. 

Embora existam outros soros animais, o soro fetal bovino é o mais utilizado devido seu baixo conteúdo de imunoglobulinas e poucas proteínas do sistema complemento. Seu uso garante um dos mais robustos sistemas de cultivo para uma ampla variedade de tipos celulares. O crescimento celular na presença de soro fetal bovino de qualidade é tipicamente rápido e consistente. Além disso, ele protege as células de grandes mudanças de pH, de forças de cisalhamento e da ação de proteases ou outros agentes que normalmente afetariam a monocamada de células aderentes. 

Como é o processo de obtenção do soro fetal bovino? 

O soro fetal bovino é preparado com sangue coletado de bezerros não nascidos (fetos) durante o abate de vacas. Importante destacar que esse processo só pode ser feito em instalações licenciadas que atendam às regulamentações federais vigentes. O sangue é coletado por punção cardíaca e refrigerado para estimular a coagulação. Após isso, ele é centrifugado e o fluido remanescente é o soro fetal bovino. O mesmo ainda é filtrado para garantir níveis seguros de esterilidade. Para assegurar qualidade e prevenir a degradação, uma vez processado, o soro é estocado e transportado em condições controladas.

Todo esse processamento precisa ser cuidadosamente monitorado para reduzir o risco de contaminação. Fornecedores confiáveis garantem um sistema de qualidade robusto e seguem normas de boas práticas de fabricação. Vários testes precisam ser feitos para demonstrar a qualidade e segurança desse material, 

incluindo a mensuração dos níveis de endotoxinas e hemoglobinas. Além disso, é preciso demonstrar ausência de contaminantes como micoplasma e vírus específicos. 

Agências governamentais estabelecem padrões e regulamentos para a indústria de soros animais. E também impõem critérios para importação e exportação de subprodutos animais. Além desse controle, existe a International Serum Industry Association (ISIA, Associação Internacional da Indústria de Soros), uma organização mundial que tem como objetivo garantir a padronização, regulamentação e rastreabilidade para a indústria global de soro animal (Figura 2). A associação concede uma certificação, com base em uma auditoria independente, que é um selo importante para identificar fornecedores comprometidos com os mais altos padrões de qualidade

Logotipo da ISIA- International Serum Industry Association/ Associação Internacional da Indústria de Soros
Figura 2. Logotipo da ISIA- International Serum Industry Association/ Associação Internacional da Indústria de Soros. #ParaTodosVerem O logotipo tem um formato de gota azul com um globo terrestre no centro e o nome International Serum Industry Association escrito ao seu lado. No site https://www.serumindustry.org/ é possível acessar diversas informações sobre a indústria mundial de soro.

Então, por que para algumas aplicações precisamos de alternativas para o soro fetal bovino? 

Devido às vantagens mencionadas acima, o soro fetal bovino se tornou um suplemento universal. Contudo, debates sérios têm acontecido tanto no campo científico quanto ético sobre sua utilização. O principal desafio metodológico está relacionado com a composição variável e não definida do soro, que varia de lote a lote. A variabilidade sazonal e geográfica em relação à  produção do material em si é outro ponto de atenção, pois gera flutuação tanto na disponibilidade quanto no preço do produto final. Do ponto de vista ético, existe todo o debate sobre a redução do uso de produtos de origem animal e o próprio sofrimento animal envolvido na obtenção do soro. 

Assim, pensando em reprodutibilidade, segurança e aspectos éticos, as aplicações abaixo são exemplos de áreas onde existe uma busca ativa por alternativas ao uso do soro fetal bovino. 

  • Produção de proteínas recombinantes de interesse farmacêutico

Células em cultura podem ser utilizadas como fábricas biológicas para produção de proteínas de interesse. Resumidamente, através da técnica de DNA recombinante, um gene alvo é inserido no genoma dessa célula, e a mesma utiliza sua maquinaria celular para produzir esse gene. Esse processo conduzido em larga escala é utilizado para produção de várias proteínas de uso terapêutico como por exemplo os anticorpos monoclonais (Figura 3).

Cultivo celular
Figura 3.  Desenho esquemático do processo de produção de proteínas recombinantes. A figura mostra imagens ilustrativas das etapas separadas por setas azuis. O processo envolve a inserção do gene de interesse através do uso de vetores plasmidiais, a seleção de células altamente produtoras e então o escalonamento do cultivo. #ParaTodosVerem: Da esquerda para direita:  Vetores plasmidiais, representados por 4 pequenos círculos azuis, seguidos por seta azul com a palavra transfecção;  Células representadas por 3 círculos amarelos e 2 verdes seguidos por seta azul com o termo seleção clonal; Células representadas por 4 círculos verdes,  representando a inserção do vetor, seguidos por seta azul com as palavras screening e expansão; Frascos de cultivo de diversos tamanhos seguidos por seta azul com o termo desenvolvimento de processo; Um biorreator, em formato retangular e cor bege,  representando a fase do escalonamento. Imagem adaptada de Bandaranayake & Almo, 2014.

Nesse caso, principalmente a variabilidade no crescimento e proliferação das células relacionada ao uso do soro fetal bovino levaram ao desenvolvimento de meios de cultivo livres de soro. Também, a presença do soro impacta no processo de purificação das biomoléculas. Outro fator negativo é o custo, pois pensando em produção em larga escala, uma grande quantidade de soro passa a não ser economicamente interessante. Importante destacar que um ponto que facilitou o desenvolvimento de meios alternativos sem soro é o pequeno número de diferentes linhagens celulares utilizadas para produção industrial. Assim, o desenvolvimento desses meios foca estritamente nas necessidades nutricionais e de processos dessas células. 

  • Terapia Celular 

Nas diferentes abordagens da terapia celular, as células propriamente ditas, ou bioprodutos derivados, são injetados diretamente em um paciente. O objetivo é o tratamento ou prevenção de doenças. Essas terapias são uma grande promessa terapêutica para doenças complexas. Atualmente, as abordagens de terapia celular podem ser divididas em duas categorias: aquelas baseadas em células tronco e aquelas baseadas em células do sistema imune (Figura 4). 

Categorias das terapias celulares de acordo com tipo celular utilizado
Figura 4. Categorias das terapias celulares de acordo com tipo celular utilizado. As terapias utilizando essas células podem substituir ou reparar células alvo, tecidos e órgãos ou matar células alvo. #ParaTodosVerem: A figura mostra um retângulo vermelho com o termo Terapia Celular, e dentro dele há dois grandes círculos.  No círculo azul há o título Células tronco, seguido de vários exemplos de tipos de células tronco (células tronco hematopoiéticas, mesenquimais, de pluripotência induzida, adultas e células tronco embrionárias). No círculo verde há o título Células do sistema imune, seguido de exemplos de células do sistema imune (macrófagos, células dendríticas, linfócitos T e linfócitos NK). Imagem adaptada de Hsu, Li-Jie et al, 2021.

Para essas aplicações, a grande preocupação, além da eficácia e qualidade da terapia, é a segurança. Assim, novamente o uso do soro fetal bovino tem impacto importante na variabilidade da produção das células. Mas, além disso, pode impactar na imunogenicidade e na possibilidade de transmissão de doenças devido à presença de príons, bactérias ou vírus. Assim, as agências reguladoras ao redor do mundo indicam que para essas aplicações o uso de produtos de origem não-animal é preferencial. E como estamos falando de poucos tipos celulares específicos, cada vez mais existem meios livres de soro e com suplementos alternativos para quando se tem interesse no uso terapêutico dessas células. 

  • Cultivo de carne in vitro

Essa é uma área de interesse crescente no Brasil e no mundo. O objetivo final é a produção da chamada “carne de laboratório” que como o próprio nome já diz, seria a produção de proteína animal sem envolver o abate direto de animais. O processo se inicia com a coleta de células do animal, utilizando métodos não invasivos. A partir daí, células tronco são manipuladas em laboratório para darem origem às células musculares, células de gordura e assim por diante.

Um dos pontos chaves do desenvolvimento desse processo é a substituição do soro fetal bovino. Ora, se um dos objetivos é um produto que gere menos impacto ambiental e que seja mais sustentável, o uso em larga escala de produtos de origem animal não faz muito sentido. Assim, muitas alternativas têm sido consideradas como suplementos de origem vegetal, por exemplo. (Figura 5).

nu et al, 2021.

Etapas na obtenção de carne cultivada in vitro.
Figura 5.  Etapas na obtenção de carne cultivada in vitro. #ParaTodosVerem A imagem mostra desenhos ilustrativos para cada etapa separados por setas pretas. Na etapa (1) o desenho de um boi marrom representando a coleta de células de animais saudáveis. No laboratório, células tronco demonstradas como pequenos círculos azuis com núcleo azul claro; (2) Células são selecionadas e mantidas em meios idealmente sem uso de produtos derivados de animais, representados por uma placa com líquido roxo e as células de formato circular, na cor azul; (3)  na imagem há a sugestão de suplementação com produtos de origem vegetal, representado pela imagem de uma pequena planta; (4) O objetivo é gerar células musculares (representada como uma grande estrutura alongada com estrias rosas)  além de outros tipos celulares para reconstituir a carne em si considerando sabor, textura e inclusive cheiro.; (5)Figura representando uma máquina para produção de carne, seguida de uma figura representando uma fatia de carne.  Imagem adaptada de Munteanu et al, 2021.

Contudo, o processo tecnológico para produção de carne de laboratório ainda precisa de maturidade para sair da biofabricação de gramas e chegar à marca de toneladas. Seguindo essa tendência, o que já temos disponível no mercado é a carne vegetal, um produto feito à base de proteínas de origem vegetal (grão de bico, ervilha, soja). E também nesse contexto a biotecnologia está presente agregando soluções para melhorar o produto final. 

Para finalizar, atualmente muitos tipos celulares já podem ser cultivados em meios livres de soro fetal bovino. Contudo, vale destacar que ainda não existe uma alternativa única capaz de substituir o soro fetal bovino como suplemento para todos os tipos celulares. Assim, esse tema ainda deve render boas discussões e desenvolvimentos tecnológicos pelos próximos anos.

Jenifer Nowatzki

SOBRE O AUTOR: 

Jenifer Nowatzki – Bióloga, com mestrado em Biologia Celular e Molecular pela UFPR e doutorado em Bioquímica Médica pela UFRJ. Trabalhou também como pesquisadora em startup de inovação radical na área de proteínas recombinantes. Atualmente é especialista técnica de produtos na ThermoFisher Scientific, responsável por temas relacionados ao Cultivo Celular.

Texto produzido em parceria com a ThermoFisher Scientific.

Cite este artigo:
NOWATZKI, J. Avanços nas aplicações do cultivo celular: o uso de soro fetal bovino está com os dias contados? Revista Blog do Profissão Biotec, v.10, 2023. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/avancos-nas-aplicacoes-do-cultivo-celular-uso-soro-fetal-bovino-dias-contados/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

REFERÊNCIAS

BANDARANAYAKE, Ashok D. & ALMO, Steven C. Recent advances in mammalian protein production. FEBS Letters. V.599, p. 253-260, 2014.
CHELLADURAI, K.S. et al. Alternative to FBS in animal cell culture – An overview and future perspective. Heliyon. V.7, e07686, 2021. 
HANDBOOK CELL CULTURE BASIC – GIBCO 2021. Acesso em PDF Request Form | Thermo Fisher Scientific – BR.
HSU, Li-Jie et al. An alternative Cell Therapy for cancers: induced pluripotent stem cell (iPSC)- Derived Natural Killer Cells. Biomedicines. V.9, n.10, 2021. 
LI, Wifeng; FAN, Zhenlin; LIN, Yan; WANG, Tian-Yun. Serum-Free Medium for Recombinant Protein Expresion in Chinese Hamster Ovary Cells. Frontiers in Bioengineering and Biotechnology. V. 9, 2021. 
MUNTEANU, Camelia et al. Can Cultured Meat be an Alternative to Farm Animal Production for a Sustainable and Healthier LifeStyle? Frontiers in Nutrition. V. 8, 2021.
VAN DER VALK, Jan et al. Fetal Bovine Serum (FBS): Past- Present-Future. ALTEX. V.35, n.1, p.98-118, 2018.
WITZENEDER, Karin et al. Human-derived alternatives to fetal bovine serum in cell culture. Transfus Med Hemother. V. 40, n.6, p. 417-423, 2013. 
Fonte da imagem destacada: ThermoFisher.

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