Entre 2018 e 2019, o Facebook enfrentou vazamentos massivos de dados, revelando como nossas informações pessoais circulam como mercadorias valiosas em mercados clandestinos. Se já nos preocupamos com algoritmos rastreando nossos hábitos diários, imagine o impacto quando dados genéticos são utilizados sem consentimento.

Convertendo dados pessoais em sequências genéticas e trocando hackers por corporações e pesquisadores globais, realmente estamos avançando em um cenário digno de um futuro distópico cyberpunk. Assistimos espécies inteiras tendo seu DNA coletado, analisado e transformado em inovações, enquanto os países de origem muitas vezes não recebem os benefícios.
Esse cenário é central para o debate sobre Informação de Sequência Digital (DSI), o equivalente biológico dos nossos dados pessoais: valiosa, disputada e frequentemente explorada sem transparência.
O que é DSI e por que ela importa?
A DSI abrange dados genômicos de plantas, animais e microrganismos, incluindo sequências de DNA, RNA, proteínas e dados metabólicos, todos armazenados digitalmente. Essas informações são fundamentais para avanços em biotecnologia, conservação da biodiversidade e pesquisas médicas. No entanto, assim como acontece com os dados pessoais online, as sequências genéticas podem ser usadas sem que os países de origem tenham controle ou recebam por isso.
Por outro lado, restringir o acesso a esses dados pode dificultar avanços científicos essenciais. Um exemplo claro foi a disponibilização pública das sequências do Covid (SARS-CoV-2), que acelerou o desenvolvimento de kits de diagnóstico e vacinas.
Esse dilema leva a uma questão crucial: como equilibrar o acesso aberto à DSI e garantir uma distribuição justa dos benefícios derivados de seu uso?
O Desafio do Protocolo de Nagoya
Para lidar com esse e outros problemas relacionados à biodiversidade, foram iniciadas as Conferências das Partes (COP) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB).
Foi em uma dessas reuniões, mais precisamente na COP-10, em 2010, que nasceu o Protocolo de Nagoya. A ideia parecia simples: garantir que quando empresas ou pesquisadores usufruem de recursos genéticos de um país, os benefícios sejam compartilhados de forma justa e equitativa. Afinal, se uma certa planta de madagascar (Catharanthus roseus) ou até mesmo o DNA de povos indígenas brasileiros levasse ao desenvolvimento de um novo remédio, cosmético ou inovação, não parecia razoável que apenas a empresa lucrasse enquanto o país de origem ficasse de mãos abanando.
Para isso, foi estabelecido o sistema de Acesso e Compartilhamento de Benefícios (ABS). Na teoria, ele funciona como um contrato: antes de utilizar um recurso genético, é necessário obter consentimento do país de origem e definir como os benefícios – sejam eles financeiros ou tecnológicos – serão repartidos.
Mas, como acontece com muitas boas ideias no papel, a implementação do protocolo trouxe desafios. Muitos países não tinham estrutura para regular e fiscalizar o uso de seus recursos genéticos. Ao mesmo tempo, algumas empresas seguiram acessando informações biológicas sem firmar acordos de repartição. Com o avanço das tecnologias digitais, o cenário ficou ainda mais complexo: sequências genéticas começaram a circular livremente em bancos de dados, tornando o controle ainda mais difícil.
Diante disso, o desafio permanece: como garantir que o uso da biodiversidade seja justo em um mundo onde os dados genéticos podem ser acessados com poucos cliques?
Brasil na vanguarda da proteção da biodiversidade digital
Em sua palestra “Biodiversidade e Ética na Era Genômica”, disponível no canal do Jardim Botânico do Rio de Janeiro no YouTube, a Dra. Manuela da Silva, bióloga da Fiocruz, destaca um paradoxo brasileiro: enquanto o mundo ainda debate quem deve lucrar com a riqueza genética, o país já estabeleceu regras claras com a Lei 13.123/2015. A legislação exige que qualquer pesquisa envolvendo genes da biodiversidade nacional — mesmo em instituições estrangeiras — seja cadastrada no Brasil, garantindo transparência e soberania sobre seu patrimônio biológico.
Essa lei tem o propósito de proteger nossas raízes e riquezas naturais contra a biopirataria. Casos como o da ayahuasca, bebida sagrada dos povos indígenas da Amazônia, que foi alvo de patente nos Estados Unidos; o cupuaçu e o açaí, cujas patentes foram reivindicadas por empresas japonesas; e o roubo das 70.000 sementes de seringueira pelos ingleses para impulsionar sua indústria da borracha, evidenciam a necessidade de salvaguardar nosso patrimônio biológico e cultural.
Na prática, porém, os desafios persistem. A burocracia para registrar novas espécies pode consumir anos, retardando descobertas científicas, e a dependência de tecnologias externas para análise genética revela uma fragilidade estratégica. “É como ter um mapa do tesouro, mas não conseguir decifrá-lo”, compara Manuela.
Para superar essas barreiras, a Fiocruz tem o Biobanco de Biodiversidade e Saúde, uma iniciativa que simplifica o acesso seguro a amostras genéticas, conectando pesquisadores globais a recursos brasileiros sob regras e ética. O Biobanco também inclui comunidades tradicionais nas decisões, questão essa recentemente abordada na COP-16.
COP-16 e o Futuro da DSI
Durante a COP-16 da CDB, realizada em novembro de 2024, em Cali, Colômbia, líderes globais discutiram novas formas de abordar a repartição de benefícios da DSI. Infelizmente a conferência não conseguiu debater todos os pontos, sendo adiada para fevereiro de 2025, em Roma, Itália, onde finalmente foram debatidas as formas de financiamento do mecanismo.

A COP-16 fez vários progressos: um deles foi o reforço da importância da participação dos povos indígenas e comunidades locais nas decisões sobre biodiversidade, reconhecendo seus conhecimentos tradicionais como essenciais para a sustentabilidade e o uso ético dos recursos genéticos.
Um dos avanços mais significativos foi a evolução das propostas do mecanismo multilateral para distribuir os lucros obtidos com o uso destes dados. A conversa culminou com a idealização de um fundo global, o Fundo Cali.
Este novo fundo revolucionário funciona assim: empresas que usufruem de DSI fariam depósitos voluntários, e o valor obtido serviria para dar apoio a três objetivos da CDB: a conservação da diversidade biológica, o uso sustentável de seus componentes e a partilha justa e equitativa dos benefícios decorrentes do uso de recursos genéticos.
A projeção de sucesso da CDB sobre o Fundo Cali é arriscada, principalmente levando-se em conta o seu fator voluntário. Ainda assim, eles colocam o futuro na consciência das empresas privadas e preveem seu sucesso para impulsionar a implementação do Quadro Mundial para a Biodiversidade de Kunming-Montreal (KMGBF),o plano diretor universal para travar e inverter a perda de biodiversidade global.
Assim, a decisão de implementação do quadro foi adiada para 2030 na COP 19, onde os frutos do Fundo Cali entre outros serão avaliados e possivelmente então teremos um final com mais esperança.
Mas então, quem controla a Informação Biológica?
A COP-16 marcou um avanço na busca por um modelo mais equitativo, mas a história está longe de terminar. O futuro da biodiversidade digital dependerá de negociações contínuas, da colaboração internacional e da capacidade de equilibrar ciência aberta e soberania biológica.
Afinal, em um mundo digitalizado, quais são os genes que circulam pelos bancos de dados? A resposta a essa pergunta moldará as políticas globais de biodiversidade nas próximas décadas.
Para entender melhor as conexões entre biotecnologia, proteção da biodiversidade e dos conhecimentos e práticas tradicionais, recomendamos este texto sobre povos indígenas e biotecnologia ao longo da história e este sobre open innovation aplicada à biodiversidade marinha.

Cite este artigo:
LEAL, R. Biodiversidade em Bytes: De quem são os genes no mundo digital? Revista Blog do Profissão Biotec, v. 12, 2025. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/biodiversidade-em-bytes-de-quem-sao-os-genes-no-mundo-digital/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
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