Você já ouviu falar em Biofármacos? Não? Mas certamente conhece a insulina, medicamento utilizado para o tratamento de diabetes. A insulina, assim como outras moléculas terapêuticas, é um exemplo clássico de biofármaco por ser um medicamento de origem biológica, ou seja, produzido por um organismo vivo. Além da insulina, temos aqui como exemplos os anticorpos monoclonais para tratamento de alguns tipos de câncer (rituximabe, trastuzumabe, entre outros), outros hormônios e algumas enzimas terapêuticas como a asparaginase.
Mas, o que isso tem a ver com a engenharia metabólica? Bom, as tecnologias de DNA recombinante foram o que possibilitaram a produção em larga escala de diversos biofármacos utilizados nos dias de hoje, principalmente de proteínas recombinantes. Como essa produção funciona e quais são suas particularidades é o que vamos tratar neste décimo texto da nossa série especial sobre engenharia metabólica.
Os Biofármacos como bioprodutos
Como falamos no segundo texto da nossa série, o primeiro passo para o desenvolvimento de um projeto de engenharia metabólica é a seleção de um bioproduto. São as características deste (valor agregado, tamanho do mercado, pureza necessária, aplicações, etc) que vão orientar várias outras decisões no projeto. No caso dos biofármacos como bioprodutos, existem alguns aspectos e particularidades para sua produção.
Por serem, usualmente, produtos de alto valor agregado, permitem uma margem maior para custos em sua produção. O mercado também acaba sendo muito menor (olhando cada biofármaco individualmente) quando comparado ao de commodities, o que faz que aqui não tenhamos que operar com escalas gigantescas e com os desafios que elas trazem para os bioprocessos. Porém, também requerem especificações de qualidade mais restritas, como alta pureza e ausência de toxinas, por se tratarem de produtos farmacêuticos. Outro ponto importante é a estabilidade do produto final. Como são geralmente moléculas grandes, se tornam muito mais instáveis, o que leva a um desafio adicional na etapa de formulação durante o seu desenvolvimento tecnológico.
Em 2016, o mercado mundial de biofármacos (em volume de vendas) era de 293,5 bilhões de dólares, representando cerca de 20% do volume total da indústria farmacêutica. E as expectativas são de que sua representatividade na indústria continue aumentando. Isso só tem sido possível devido aos avanços na biotecnologia e à engenharia metabólica.
Produção de biofármacos
Boa parte ativos farmacêuticos são sintetizados quimicamente, por serem moléculas simples. No entanto, os biofármarcos costumam ser moléculas grandes e complexas – tais como as proteínas – o que torna a síntese química muito difícil. Normalmente, eles são então ou extraídos de plantas e animais, ou produzidos através de células em biorreatores.
Voltando ao exemplo da insulina, o hormônio começou a ser aplicado em humanos como tratamento para diabetes na década de 1920 e a princípio era extraído do pâncreas de animais (porcos e vacas abatidos). A insulina nada mais é do que uma proteína de 51 aminoácidos produzida pelas células beta-pancreáticas do corpo humano. Quando, por algum motivo, essas células não conseguem que a produção seja de forma apropriada ou em quantidades suficientes é necessária sua reposição. Na época, eram necessárias cerca de 2 toneladas de partes de porco para a extração de apenas 227 gramas de insulina purificada. Em 2018, estimava-se 526 milhões de frascos (com mil UI) do medicamento consumidos no mundo por ano. Imagina se só tivéssemos disponível a produção pela extração animal!
Hoje, a insulina derivada de animais ainda está presente no mercado, mas a maior parte de sua produção é realizada por microrganismos modificados geneticamente, como a bactéria Escherichia coli ou a levedura Saccharomyces cerevisiae. O primeiro projeto de engenharia metabólica para produção de insulina que resultou em uma droga aprovada foi desenvolvido pela Genentech, licenciado em 1982. Quando falamos da sua produção em microrganismos, trata-se de fazer com que esses organismos produzam cópias dessa proteína que não é natural deles, ou seja, uma expressão de proteína heteróloga. A partir dessas células produtoras, podemos então purificar a proteína que será formulada para o produto final. Essa história se repete de forma muito similar para outros biofármacos como o hormônio de crescimento humano.
No Brasil, diversos esforços e iniciativas têm sido feitos para possibilitar a produção nacional de biofármacos, principalmente os biossimilares (produtos com grande similaridade ao biofármaco de referência). A Libbs farmacêutica foi a primeira empresa a produzir nacionalmente um biossimilar, o trastuzumabe (anticorpo monoclonal para tratamento de câncer), com operação iniciada em 2018. Outras empresas farmacêuticas também têm projetos para produção de biofármacos e biossimilares no país, como a Bionovis, o Cristália, a Receptabio, entre outras.
Principais desafios da produção de biofármacos
Existem processos de produção de biofármacos utilizando tanto células animais, quanto microrganismos, cada qual com suas vantagens e desvantagens. O uso de células de mamíferos diminui alguns desafios técnicos de engenharia metabólica, por outro lado tem um cultivo mais lento e custoso. Por isso, a busca por tecnologias que possam possibilitar a produção em microrganismos.
Aqui vamos focar nesses desafios de engenharia metabólica para a produção em microrganismos.
Quando falamos da produção de proteínas heterólogas ou recombinantes não se trata apenas de inserir o gene para a proteína nessa célula hospedeira, é necessária toda uma manipulação de sua maquinaria para que tenhamos um produto final com bom rendimento, de possível purificação e correto enovelamento e processamento. Como o microrganismo hospedeiro não tem geralmente os mesmos mecanismos de processamento ou sinalizações de modificações pós-traducionais que uma célula animal, é necessário manipulá-lo de forma que ele seja capaz de realizá-las, ou que essas modificações sejam realizadas em um pós-processamento.
Enovelamento d eproteínas
A estrutura tridimensional das proteínas, ou seja, seu enovelamento é essencial para sua correta função. Considerando que muitos biofármacos são proteínas, então é necessário que estejam enoveladas corretamente no produto final para que possam ser utilizadas em tratamento. Por isso, precisamos que a célula produtora possua mecanismos para esse correto enovelamento.
Na produção por bactérias, é necessário que haja então a expressão de proteínas chaperonas. Essas proteínas são responsáveis por ajudar no enovelamento correto de outras proteínas. No caso de E. coli, as chaperonas mais utilizadas são as GroEL, GroES, DnaK, DnaJ e GrpE. Além disso, nesse organismo, é comum que as proteínas heterólogas acabem se acumulando em corpos de inclusão formando agregados insolúveis, o que impede seu uso. O uso de chaperonas também ajuda que esses agregados sejam solubilizados, facilitando uma posterior extração e purificação do produto.
Outro fator é que proteínas funcionais, às vezes, são formadas por mais de uma cadeia de aminoácidos (a estrutura quaternária) e nem sempre os microrganismos conseguem reproduzir as ligações necessárias entre essas cadeias. A solução aqui pode ser expressar as cadeias de forma única, utilizando “links” entre elas, que após a purificação da proteína serão degradados por clivagem enzimática. Outro método seria expressar e purificar as cadeias de maneira independente e, após a purificação, submetê-las a uma condições químicas que possibilitem a formação das ligações entre elas.
Modificações pós-traducionais
Algumas proteínas requerem além do enovelamento, modificações pós-traducionais para o seu correto funcionamento. Essas modificações são realizadas depois que a proteína já se encontra completa, sendo a mais comum a glicosilação (adição de açúcares em alguns aminoácidos da proteína). Organismos simples como E. coli, não possuem mecanismos para fazer essa adição, mas existem tentativas para se colocar rotas metabólicas inteiras de mecanismos de glicosilação na bactéria. Uma delas se trata da transferência das rotas presentes em outra bactéria, Campylobacter jejuni, para E. coli.
Leveduras até possuem esses mecanismos, mas a forma como elas montam esses açúcares (com adição de manose) na proteína acaba sendo muito diferente das células animais. Isso pode resultar em uma resposta imunológica no paciente ao ser tratado com a proteína, causando a destruição rápida da mesma ou alergias. Por isso, pesquisadores trabalham na tentativa de “humanizar” as rotas de glicosilação de algumas leveduras.
Performance melhorada
Além de uma produção mais eficiente, a utilização das tecnologias de DNA recombinante permite que modificações na sequência de aminoácidos sejam realizadas de forma a melhorar a ação da proteína terapêutica, sua velocidade de ação e estabilidade. Isso gera uma diversidade maior de possíveis produtos. Por exemplo, podemos modificar intencionalmente resíduos de aminoácidos no sítio ativo de uma enzima para que ela tenha uma ação mais lenta ou mais rápida quando aplicada no paciente.
O mercado de biofármacos vem crescendo. Já vemos novas tecnologias sendo desenvolvidas de maneira a tentar diminuir o custo de desenvolvimento tecnológico e a atender a crescente demanda por esses medicamentos. No Brasil, considerando inúmeras patentes de biofármacos que venceram na última década, os biossimilares e as parcerias de desenvolvimento público e privado (PDP’s) podem representar oportunidades para o desenvolvimento nacional da área. Claro, que isso dependerá da correta aplicação de políticas públicas. A biotecnologia já é e continuará sendo no futuro a principal aliada desse mercado.
Este texto faz parte da Série Especial sobre Engenharia Metabólica. Confira os demais textos aqui!
Cite este artigo:
BIEMBENGUT, I.V. Biofármacos: o que a engenharia metabólica tem a ver com eles. Blog do Profissão Biotec, v.7, 2021. Disponível em: < > Acesso em: dd/mm/aaaa