Em projetos de Engenharia Metabólica, diversas “biofábricas” microbianas são utilizadas para desenvolver bioprocessos industriais. Confira!

A engenharia metabólica é uma área da ciência que está em amplo crescimento nos últimos anos, especialmente devido às novas técnicas e ferramentas desenvolvidas, como a revolucionária técnica de edição genética CRISPR-Cas9. No entanto, de nada serve identificar uma molécula interessante, desenhar uma via metabólica e criar uma estratégia super refinada para executar o projeto, quando na hora de escolher uma linhagem de microrganismo (conhecido também como “biofábrica” ou “chassi”) ele não seja ideal. Essa é uma questão complexa e muito importante durante o planejamento de um projeto nessa área.

Cada microrganismo possui um metabolismo diferente e mecanismos genéticos específicos. Essas características foram selecionadas através da evolução ao longo de muito tempo para responder adequadamente ao ambiente externo.

Um microrganismo que vive, por exemplo, em um ambiente com alta salinidade como o mar, possui modificações na composição das membranas celulares e acumula grandes quantidades de íons e outros compostos chamados “osmólitos” para compensar o estresse osmótico causado pelo sal. Por estas características, boa parte do metabolismo desse microrganismo “halófilo” vai estar focado na produção dessas moléculas de proteção, o que pode impactar no rendimento final caso ele seja utilizado como biofábrica em um projeto de Engenharia Metabólica. Desta forma, é esperado que a mesma modificação genética em diferentes microrganismos cause efeitos diferentes. Por isso, a escolha da “biofábrica” deve ser muito bem planejada, e destacamos quatro fatores principais para determinação do microrganismo utilizado.

A primeira característica mandatória para um microrganismo qualificar-se como biofábrica é que ele seja considerado um organismo GRAS (generally recognized as safe, ou “geralmente reconhecido como seguro”). Ou seja: não podemos utilizar microrganismos patogênicos (que causam doenças).

A disponibilidade de informações genéticas e técnicas de biologia sintética para a biofábrica escolhida é muito importante também. Ter a sequência genômica, informações sobre o funcionamento das enzimas e vias metabólicas facilita a execução de estudos. Por causa disso, os projetos de Engenharia Metabólica normalmente utilizam organismos modelos, que já foram muito estudados. No entanto, para algumas aplicações específicas, novos microrganismos estão ganhando destaque.

Um terceiro fator a ser considerado é que o microrganismo escolhido apresente uma boa taxa de crescimento e demandas nutricionais simples. Se o microrganismo possuir uma taxa de crescimento muito lenta, será necessário mais tempo de fermentação para produzir a biomolécula, o que significa um maior custo de processo e uma menor produtividade. Da mesma forma, a exigência de nutrientes específicos significa um maior gasto na formulação do meio de cultivo.

Outra característica importante é a “robustez” do microrganismo, ou seja, a capacidade de tolerar estresses, tais como alta concentração do produto final da rota metabólica e aos produtos intermediários, variações em temperatura, pH e limitações nutricionais. Essa qualidade é importante para garantir que não haja inibição de crescimento e/ou da capacidade de produção, o que diminuiria o rendimento do produto final. 

Além dessas características gerais, existem outras razões para escolher um ou outro microrganismo para determinados bioprocessos. Vamos detalhar a seguir quais são as “biofábricas” mais utilizadas.

Na linha de frente, as bactérias

Por apresentarem rápido crescimento, células simples (procarióticas) e de fácil manipulação genética, as bactérias são muitas vezes a escolha óbvia para projetos de Engenharia Metabólica.

Escherichia coli

Micrografia eletrônica de varredura de células de Escherichia coli. Fonte: NIAID, National Geographic

Modelo de estudo há mais de 50 anos, podemos afirmar com certeza que E. coli é a bactéria mais popular no mundo da Engenharia Metabólica. Ela é gram-negativa, o que significa que possui parede celular mais fina e menos robusta que a de bactérias do tipo gram positivo. 

E. coli também possui rápido crescimento (tempo de duplicação de cerca de 20 minutos em condições ideais), baixa demanda nutricional e é anaeróbica facultativa, ou seja, consegue crescer com ou sem a presença de oxigênio.

Diversos tipos de linhagens de E. coli já foram geradas para demandas específicas, como por exemplo a BL21 Rosetta, que possui tRNAs (RNA transportadores) que reconhecem códons raros, melhorando a expressão de proteínas recombinantes. Existem linhagens de E. coli “engenheiradas” para a produção de quase tudo: biocombustíveis, solventes, aminoácidos, fármacos, etc.

Bacillus subtilis

Colônias de Bacillus subtilis em meio de cultivo sólido ágar CMC. Fonte: Naresh Sandrasekaran et al/ResearchGate

Bacillus subtilis é aeróbica, não-patogênica e provavelmente a bactéria gram-positiva (possui espessa parede celular) mais bem estudada e caracterizada, principalmente devido a sua competência natural para transformação de DNA e a formação de esporos. Uma característica que a destaca é a alta capacidade de expressão e secreção de proteínas, chegando a atingir faixas de gramas por litro, o que reduz custos com purificação e recuperação.

Diversos compostos já foram produzidos usando células de B. subtilis, tais como taxol, proteínas e enzimas, nucleotídeos, surfactantes, biopolímeros, etc.

Corynebacterium glutamicum

Microscopia eletrônica de varredura de células de C. glutamicum. Fonte: Wikipedia

Oriunda do solo, essa bactéria foi descoberta e caracterizada em 1956 pela sua capacidade de produzir altas quantidades do aminoácido L-glutamato. Nos anos seguintes, foram desenvolvidos processos fermentativos para a produção industrial deste e de outros aminoácidos como a L-lisina. Por ser um excelente produtor natural, é normalmente a biofábrica escolhida para projetos que visam produzir concentrações ainda maiores de aminoácidos.

C. glutamicum é uma bactéria gram-positiva, não esporulante e aeróbica facultativa (ou seja, cresce com ou sem oxigênio). Além da produção de aminoácidos, ela também já foi usada para produzir ácidos orgânicos, diamidas e outras moléculas. 

Outros biofábricas bacterianas 

Existem diversas outras linhagens usadas em projetos de Engenharia Metabólica, tais como:

  • Pseudomonas putida: bactéria gram-negativa muito robusta, de fácil manipulação e produtora natural de uma série de metabólitos  secundários, tais como terpenóides, ramnolipídeos e outros. É bastante utilizada para biorremediação pela sua capacidade natural de degradar alguns poluentes orgânicos como tolueno.
  • Rhodococcus sp.: bactéria gram-positiva e aeróbica. Possui capacidade natural de degradar lignina e outros compostos lipídicos como esterol, além de tolerar certos compostos tóxicos, o que a torna interessante para rotas metabólicas e/ou produtos complexos.
  • Clostridium acetobutylicum: com capacidade de crescer usando diversas fontes de carbono e em ambiente anaeróbico, essa bactéria possui boa tolerância à solventes. Já foi usada industrialmente para a produção de acetona, butanol e etanol, além de outros solventes e combustíveis.
  • Bactérias termofílicas: diversas bactérias (e arqueas) estão sendo estudadas como biofábricas devido à sua capacidade de crescer em temperaturas mais elevadas, o que reduz a chance de contaminação, e pela maior compatibilidade com processos industriais químicos já existentes. Alguns exemplos são Thermus thermophilus, Pyrococcus furiosus (arqueia), Sulfolobus sp., entre outros.
  • Bactérias halófilas: são bactérias capazes de suportar altas concentrações salinas, possibilitando bioprocessos de fermentação usando água do mar e reduzindo a contaminação com outras bactérias. Halomonas sp. é uma linhagem já estudada para esta Engenharia Metabólica.
  • Bactérias metilotróficas e cianobactérias: estas bactérias utilizam moléculas de apenas um carbono, tais como metano (CH4) e dióxido de carbono (CO2) respectivamente, como fonte de carbono e energia para o seu crescimento. Diversas linhagens destes grupos estão sendo estudadas como biofábricas capazes de realizar a fixação de carbono e subsequente remoção de gases do efeito estufa da atmosfera. Normalmente apresentam crescimento mais lento. Esta é uma das áreas de estudo mais “quentes” da Engenharia Metabólica. Alguns exemplos são: Synechococcus elongatus (cianobactéria), Methylomonas sp. e Bacillus methanolicus (bactérias metilotróficas).

Mais robustas, as leveduras

Embora as bactérias sejam a forma mais simples de organismos vivos existente, o que as torna fáceis de modificar geneticamente e cultivar em bioprocessos, possuem algumas limitações. Por serem células procarióticas, possuem algumas limitações em relação a mecanismos moleculares quando comparadas aos organismos eucarióticos, normalmente demandam um desenvolvimento de bioprocesso mais asséptico e controlado (o que o torna mais caro) e também são susceptíveis à ataque de fagos (vírus que atacam e invadem células bacterianas).

Por tais razões, as leveduras (fungos unicelulares) – em especial Saccharomyces cerevisiae, a famosa levedura de pãopossuem ampla aplicação em bioprocessos industriais.

Saccharomyces cerevisiae

Microscopia eletrônica de varredura de células de Saccharomyces cerevisiae. Fonte: Mogana Das Murtey and Patchamuthu Ramasamy/Wikipedia

Saccharomyces cerevisiae é certamente o microrganismo mais famoso do mundo dos bioprocessos, devido à sua aplicação milenar na produção de pão, vinho e cerveja.

É um dos organismos eucarióticos mais simples, unicelular, fácil de trabalhar e com rápido crescimento (tempo de duplicação de 2 horas). Isso a torna não só um dos microrganismos mais utilizados em processos fermentativos, mas também um organismo modelo para estudos de mecanismos genéticos, uma vez que seu material genético DNA é organizado em cromossomos e cerca de 23% de seus genes têm um equivalente no genoma humano.

Algumas desvantagens do seu uso em projetos de Engenharia Metabólica são sua atividade excessiva de glicosilação (adição de açúcares) de proteínas heterólogas e o metabolismo focado na produção de etanol, que acaba diminuindo o rendimento de produção de outras biomoléculas e pode influenciar no crescimento da levedura, dificultando fermentações com alta densidade celular.

É utilizada em diversos bioprocessos industriais, especialmente para a produção de bioetanol.

Pichia pastoris

Microscopia eletrônica de varredura de P. pastoris. Fonte: Dennis Kunkel/Revista Science

Outra levedura muito usada para estudo é a Pichia pastoris, que recentemente foi renomeada como gênero Komagataella, de acordo com estudos filogenéticos.

P. pastoris (ou K. pastoris) foi descoberta nos anos 60 e é uma levedura metilotrófica, ou seja, consegue utilizar metanol como fonte de carbono e energia. É capaz de crescer bem em meio de cultivo simples, atingindo concentrações celulares muito altas e resultando em bom rendimento de produção de biomoléculas. Outra vantagem é que as técnicas de modificação genética utilizadas para S. cerevisiae normalmente também funcionam para P. pastoris.

Tais características a tornam uma biofábrica muito utilizada em estudos na área de biotecnologia, em especial como sistema de expressão de proteínas recombinantes e na produção de biomoléculas.

Para facilitar, um resumo

MicrorganismoTipo celularTemperatura ideal de crescimentoMetabolismo Principais vantagens Principais bioprodutos
Escherichia coliProcarioto37°CAnaeróbio facultativo
Heterotrófico
Fácil manipulação genética, rápido crescimento, diversas linhagens “especiais” disponíveisOs mais variados bioprodutos já foram produzidos em E. coli: biocombustíveis, solventes, aminoácidos, fármacos, etc.
Bacillus subtilisProcarioto25-35°CAnaeróbio facultativo
Heterotrófico
Fácil manipulação genética, rápido crescimento, alta capacidade de expressão e secreção de proteínasProteínas e enzimas, nucleotídeos, surfactantes biopolímeros, etc.
Corynebacterium glutamicumProcarioto37°CAnaeróbio facultativo
Heterotrófico
Fácil manipulação genética, produtor natural de altas concentrações de aminoácidosPrincipalmente aminoácidos.Também já foi usada para produção de.  ácidos orgânicos, diamidas e outros.
Pseudomonas putidaProcarioto30°CAeróbio
Heterotrófico nitrificante
Capacidade natural de consumir poluentes orgânicos,alta robustez e Degradação de agroquímicos e poluentes orgânicos. Produção de ácidos orgânicos, terpenóides, ramnolipídeos e outros.
Rhodococcus sp.ProcariotoCerca de 26°CAeróbio
Heterotrófico
Capacidade natural de tolerar e consumir compostos orgânicos complexos (lignina e lipídeos)Triacilgliceróis,hormônios, ácidos orgânicos e outros.
Saccharomyces cerevisiaeEucarioto28-30°CAeróbio facultativo
Heterotrófico
Fácil manipulação genética, rápido crescimento, mecanismos moleculares mais sofisticados. Produtora natural de etanol.Os mais variados bioprodutos já foram produzidos em S. cerevisiae: bioetanol, ácidos orgânicos,, aromas e fragrâncias, biofármacos, etc.
Pichia pastoris (Komagataella pastoris)Eucarioto25°CAeróbio
Heterotrófico
Fácil manipulação genética, rápido crescimento com alta densidade celular, boa capacidade de produção e expressão de enzimas. É capaz de usar metanol como fonte de carbono.Enzimas, solventes, ácidos orgânicos, etc.
Aeróbio: cresce somente em ambiente com a presença de oxigênio.
Anaeróbio facultativo: cresce e sobrevive com ou sem a presença de oxigênio.
Heterotrófico: ser vivo que não possui capacidade de produzir seu próprio alimento e necessita de consumir do meio ambiente.
Tabela produzida pela autora.

Para bioprodutos especiais, outros organismos

Para alguns bioprodutos complexos, é necessário utilizar organismos com mecanismos genéticos mais complexos, como fungos multicelulares, algas, plantas, células de insetos ou células de mamíferos. Algumas enzimas e/ou biomoléculas precisam de chaperonas específicas para garantir a estrutura tridimensional adequada ou outros mecanismos que possibilitem modificações pós-traducionais como glicosilação, formação de pontes dissulfeto, fosforilação, metilação, etc. Além disso, algumas rotas metabólicas são nativas de organismos mais complexos, o que torna mais fácil modificá-las diretamente do que transferir toda a via para um organismo mais simples como bactérias e leveduras.

A escolha da “biofábrica” celular é uma etapa muito importante para a Engenharia Metabólica e pode definir o sucesso do projeto. É claro que não existe uma única linhagem para cada bioproduto: a eficiência pode variar de acordo com a estratégia escolhida, as informações disponíveis (publicações científicas, conhecimento de genoma e/ou partes biológicas, entre outros), o meio e as condições de cultivo, etc. O mais importante é ter consciência do porquê você escolheu determinado organismo e quais as vantagens ele pode trazer em relação aos outros.

Nos próximos textos falaremos mais sobre estratégias para “engenheirar” microrganismos, da bioinformática à bancada do laboratório. Continue acompanhando a série Engenharia Metabólica – hackeando a biologia!

Texto revisado por Ísis Biembengut e Natália Videira
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