Hoje mesmo respondi ao curioso ouvinte sobre meu trabalho na área de bioprocessos, não obtendo muito mais do que uma cara confusa. Não à toa, a novidade e velocidade de inovação nesse campo implica em um desconhecimento bastante comum sobre essa importante área da tecnologia humana.
Misturando campos de atuação diversos, a indústria de bioprocessos consegue fazer trabalharem juntos engenheiros, biólogos, cientistas de dados e programadores, bioquímicos, financistas e tutti quanti, algo não menos impressionante que os próprios frutos da tecnologia. Para evitar futuros mal entendidos, e para que você possa contemplar essa incrível façanha tecnológica, tentarei agora tornar mais claro esse conceito.
Um fortuito acidente
Um exemplo clássico para explicar o que é biotecnologia é a descoberta da penicilina, por Alexander Fleming. Essa descoberta foi, na verdade, um experimento microbiológico que deu errado – um fungo que cresce sem ser chamado – e que culminou na descoberta do primeiro antibiótico, cuja aplicação salvou a vida de milhões de pessoas.
A descoberta ocorreu em 1928, uma época em que uma simples infecção ainda poderia ser mortal. Rapidamente se tornou claro que uma substância capaz de impedir e tratar infecções seria quase tão valiosa quanto o ouro (uma dose de penicilina em 1943 poderia custar mais de R$ 1.500,00 em valores atuais). No entanto, a grande pergunta era: como produzi-la em larga escala?
Com essa pergunta surge a área de bioprocessos: Como produzir em escala industrial e a um preço economicamente viável as moléculas que microrganismos criam? A pergunta permanece relativamente inalterada, a técnica, porém, evoluiu bastante.
Abra-te, sésamo!
Desde quando as implicações dos trabalhos botânicos do Pe. Gregor Mendel foram conhecidas, ainda nos anos 1800, suspeitava-se que deveria existir alguma forma de código, um livro de receitas dentro de cada célula, que ensinava a ela tudo o que deveria ser feito para sobreviver. Em 1953, essa suspeita se confirmou quando, pelo trabalho revolucionário de Watson e Crick, a estrutura do DNA foi elucidada e essa caixa de surpresas dos seres vivos foi aberta ao conhecimento, e à manipulação. Entra aqui a primeira peça de um bioprocesso: o metabolismo!
Imagine que você seja dono de uma fábrica de molas, porém nesta fábrica os trabalhadores do turno da noite são rebeldes e gostam de fazer alguns lápis, cadeiras e uniformes. Os itens com certeza são úteis, porém não dão nenhum dinheiro. E ainda pior: gastam insumos e tempo de trabalho. Definitivamente essa fábrica não será muito lucrativa ou eficiente. Exatamente assim funcionam os microrganismos selvagens: uma fábrica rebelde, e não muito lucrativa. O primeiro passo para um bioprocesso industrial é entender os fluxos metabólicos, como exercer controle sobre eles e direcioná-los ao seu produto de interesse. Como fazer a bactéria produzir o bioproduto que te interessa, e não o aminoácido que interessa a ela, mas não tem valor no mercado?
As soluções para esse problema são muitas, e engenhosas, porém a mais eficiente e amplamente utilizada é a manipulação genética de rotas metabólicas, conhecida também como Engenharia Metabólica. Fruto de décadas de pesquisa, essa tecnologia hoje é empregada amplamente para gerar microrganismos-fábrica extremamente específicos e eficientes, direcionando todas suas forças para a produção de uma única molécula de interesse. Nos outros textos desta série abordamos com maior profundidade esse tema. Essa intervenção, porém, torna o microrganismo incapaz de se desenvolver em um ambiente que não esteja perfeitamente projetado e calibrado.
Microrganismos como fábricas
Pronto! Rotas metabólicas desvendadas, genoma modificado e microrganismo aperfeiçoado. Como muitas cepas da indústria de bioprocesso moderna, sua bactéria ou fungo produz uma molécula em uma taxa próxima do máximo teórico, ou seja, não dá para ficar melhor! (Após um longo processo de desenvolvimento).
Definitivamente seu microorganismo está preparado para ser muito rentável fora do laboratório, porém como passar de uma escala de poucos litros para milhares ou até milhões de litros? Antes de construir uma fábrica de erlenmeyers gigantes e tubos de ensaio de mil litros, talvez seja uma boa ideia contratar um engenheiro para realizar o que chamamos de escalonamento.
O campo dos Bioprocessos pode ser dividido em duas etapas básicas:
- Upstream: preparo do meio de cultura e fermentação;
- Downstream: industrialização do caldo fermentado e purificação do produto.
Entramos na etapa chamada de upstream, ou de produção. Caso os cientistas tenham feito um bom trabalho “engenheirando” o microrganismo, essa etapa será agora o menor dos problemas. Excetuando casos específicos, normalmente na indústria farmacêutica, tudo neste momento será grande e o equipamento-chave nessa etapa tem nome bonito: biorreator (ou fermentador, para os mais íntimos). Não é incomum que esses equipamentos tenham mais de meio milhão de litros e caldeiras de vapor maiores do que prédios.
Os fermentadores nesta escala costumam parecer mais torres de indústrias químicas do que aqueles frascos ou jarros de vidro, muito comuns no imaginário de quem quer que pense em cultivo de microorganismos. No final, o objetivo de todos é o mesmo: proporcionar um ambiente perfeito para que a cepa faça o seu trabalho, ou seja, a produção do metabólito de interesse. Isso envolve manter a temperatura ideal e um bom suprimento de oxigênio e açúcar.
Esses equipamentos industriais costumam variar principalmente entre dois modelos: tanques agitados e colunas de bolhas. Colunas de bolhas são altas torres cuja mistura do líquido acontece pelo próprio deslocamento de grandes quantidades de ar que é injetado pelo fundo, enquanto tanques agitados possuem um motor e eixo central, com pás que proporcionam agitação. Cada um possui suas vantagens e desvantagens, sendo o trabalho do engenheiro determinar como utilizá-los.
Os desafios aqui são diversos: vão desde caminhões de carregamento que atrasam a válvulas danificadas e contaminações inesperadas. Quem se aventurar nesse ambiente industrial deve contar com conhecimentos variados, começando pela bioquímica do microrganismo até a eficiência de um trocador de calor ou a dinâmica dos fluidos de um tanque agitado.
Da indústria aos mercados: O mundo da purificação dos bioprocessos
Não é incomum que sejam “engenheiradas” novas cepas para produtos inovadores, tudo para se descobrir que ela produz outra molécula quase igual, mas indesejada. Isso pode ser fatal para uma fábrica, pois segregar duas ou mais moléculas parecidas pode se tornar um negócio caro. Nesta etapa de downstream, ou a purificação de seu produto, tudo gira em torno de explorar as peculiaridades de sua molécula a seu favor.
Aqui os conhecimentos de química e bioquímica, engenharia e física podem ser muito úteis. Qual é a afinidade desta molécula por esta ou aquela resina? Qual é sua densidade, ou solubilidade em determinado solvente? As chamadas operações unitárias, jargão para cada uma das etapas individuais do processo, podem se avolumar em quantidade e diversidade, e englobam centrifugação, filtração, evaporação, cristalização, cromatografia, entre outras.
Os produtos de bioprocessos estão sempre em meio de cultivo complexo, misturados com proteínas, açúcares, ácidos, entre outras substâncias presentes em uma fase líquida. Caso seu produto seja um óleo, talvez a separação seja fácil: Aproveita-se a diferença de densidade e polaridade entre ele e a água, passa-se por uma centrífuga e provavelmente ele estará quase puro. Caso seja uma proteína, provavelmente será mais difícil. Milhares de tipos de proteínas diferentes estão misturadas, portanto etapas sucessivas podem ser necessárias para purificá-la, e talvez no final a maior parte seja perdida.
Uma boa e engenhosa etapa de separação pode ser a diferença entre seu produto custar dez dólares/kg ou mil – quanto mais puro estiver, poderá ser usado em aplicações mais nobres (como ativos farmacêuticos, por exemplo).
E assim chegamos na última etapa, a qual ocupa essa posição final no artigo por conveniência, pois na verdade ela se entremeia por todas as etapas, do início ao fim.
“Nunca gaste seu dinheiro antes de recebê-lo”
Thomas Jefferson definitivamente não conhecia o termo “ retornos de investimento” quando proferiu essas palavras. Roda motriz da indústria moderna, investimentos a longo prazo tornam tudo possível a construção de indústrias de bioprocessos, desde que se calcule da maneira mais exata possível o quanto se deve produzir, por qual preço, e como vender.
O que não foi mencionado no início do artigo é que esse importante cálculo acontece antes mesmo de que os primeiros trabalhos em laboratório sejam iniciados. Tudo depende da análises econômicas: qual é a produtividade mínima para que um processo seja rentável? Qual deve ser o tamanho dos fermentadores e como planejar as demandas da fábrica? Quanto será gasto para purificá-lo? Quando tiver essas respostas, terá seu guia para todo o trabalho, e ela servirá de parâmetro para todas as decisões.
Este texto faz parte da Série Especial sobre Engenharia Metabólica. Confira os demais textos aqui!
Autor: Juliano Feliz Thoms
Atuo na área de bioprocessos industriais, meu desafio diário é levar o laboratório à indústria. Gosto de aprender coisas novas e o mundo da biotecnologia é um prato cheio. Engenheiro de bioprocessos pela UFPR.
Texto revisado por Caroline Salvati e Ísis Biembengut
Cite este artigo:
THOMS, J.F.Bioprocessos em detalhes: do laboratório à indústria. Blog do Profissão Biotec, v.7., abril/2021. Disponível em: <www.profissabobiotec.com.br/bioprocessos-em-detalhes-do-laboratorio-a-industria> . Acesso em: dd/mm/aaaa