Saiba mais como a biotecnologia pode ser aplicada para a utilização de compostos e substâncias animais para a produção de medicamentos.

É comum em nosso dia-a-dia o contato com diversos tipos de medicamentos. Sejam aqueles que necessitamos tomar de forma controlada por algum problema de saúde, seja devido a alguma necessidade momentânea de suprir determinadas substâncias do corpo, ou até mesmo para tratar alguma doença. Porém, algo que muitas vezes não nos questionamos é: de onde vêm estes remédios? Será que eles são obtidos de forma exclusivamente sintética e laboratorial, utilizando apenas propriedades químicas?

Sabe-se que, desde a antiguidade, era comum a utilização de animais para o tratamento de doenças, embora, em sua maioria, com práticas supersticiosas. Porém, ainda assim, descobriram-se inúmeras possibilidades de utilizar animais na medicina de forma eficiente, com resultados satisfatórios, nos mais diversos povos do mundo. Atualmente, os pesquisadores conseguem, em muitos casos, utilizar substâncias produzidas por animais para obter efeitos terapêuticos em seres humanos, no tratamento de diversos tipos de doenças e enfermidades.

Nos dias de hoje, os principais centros de pesquisa do mundo, bem como indústrias farmacêuticas, utilizam inúmeras substâncias oriundas do corpo animal – ou de seu metabolismo – para a produção das mais variadas formas de medicamentos e soros. Veremos neste artigo do Profissão Biotec diversos exemplos.

Selante de Fibrina

Este medicamento com propriedades cicatrizantes, de tecnologia brasileira, ainda está em desenvolvimento no Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos (CEVAP) da Unesp, em Botucatu-SP. Ele está sendo desenvolvido para utilização em tratamentos de úlceras crônicas na pele, além de cirurgias, funcionando como um biocurativo. Seu princípio ativo é capaz mimetizar a fase final da cascata de coagulação do sangue e, por ser de origem biológica, é biocompatível com nosso organismo, não implicando em uma rejeição.

A produção desse medicamento ocorre a partir de uma enzima encontrada no veneno de cascavel, a serino-protease; juntamente com uma substância do sangue de búfalo, rico em fibrinogênio. Estes, misturados, formam uma rede de fibrina, apresentando capacidade hemostática, coagulante, cicatrizante e adesiva, para, por exemplo, aplicação em enxertos e nervos, além de se mostrar um candidato a reparo ósseo e cartilaginoso como scaffold de células-tronco. 

Mas porque é utilizado sangue de búfalo e não de outro animal? A resposta é simples: o sangue do búfalo possui fibrinogênio em maior abundância. Esta proteína auxilia na coagulação do sangue e na cicatrização das feridas. Somado a isto, o búfalo é um animal de manejo com baixas despesas em comparação com outros animais. Por ser de origem biológica, é biocompatível com nosso organismo, não implicando em uma rejeição.

Para saber mais sobre este biocurativo, assista a esta entrevista do programa Ciência sem Limites da TV Unesp.

Extração do veneno de uma cascavel. Fonte: Unesp

Captopril 

Famoso remédio utilizado no tratamento de hipertensão arterial, insuficiência cardíaca, infarto do miocárdio e nefropatia diabética. O que muitos não sabem é que o captopril possui seu princípio ativo oriundo do veneno da jararaca brasileira (Bothrops jararaca)

Este princípio ativo é capaz de intensificar a resposta à bradicinina (peptídeo responsável pela dilatação dos vasos sanguíneos, o que reduz a pressão arterial) , e, além disso, inibe a enzima conversora da angiotensina, impedindo que a angiotensina I seja convertida em angiotensina II. Sem esta, não há a ocorrência da vasoconstrição periférica (processo de contração do músculo liso dos vasos sanguíneos), o que diminui a resistência vascular periférica, acarretando na diminuição da pressão arterial. 

S érgio Henrique Ferreira, farmacologista brasileiro responsável pela descoberta do captopril. Fonte: Fiocruz

Exenatida

Medicamento utilizado no tratamento de diabetes mellitus tipo 2, é obtida da extração de uma proteína encontrada na saliva do monstro-de-gila (Heloderma suspectum), animal nativo do México e sudoeste dos Estados Unidos. A exenatida demonstrou efeitos glicorregulatórios em ensaios clínicos, além de uma melhoria significativa nos níveis de hemoglobina glicada (A1C) em pacientes com diabetes que não puderam alcançar o controle glicêmico com doses de outras medicações. Os níveis de A1C devem-se manter abaixo de 7%, a fim de diminuir o risco de complicações causados por esta doença.

Seu destaque é considerável, uma vez que, segundo dados da OMS, 422 milhões de pessoas no mundo possuem diabetes. No Brasil, ainda de acordo com a OMS, 8.1% da população possui diabetes. A forma mais comum é justamente a de tipo 2, principalmente devido ao aumento do número de pessoas obesas e práticas sedentárias ao redor do globo. Isso implica no elevado nível de glicose e deficiência de insulina, sendo necessária sua administração.  

Monstro-de-gila. Fonte: The Natural History Museum

Outros exemplos

Heparina: utilizada para tratar trombose venosa profunda e embolia pulmonar. Ainda, possui ação anticoagulante e  é obtida a partir de extrações do tecido pulmonar de bois e da mucosa intestinal de porcos

Lepirudina: derivado recombinante do anticoagulante da sanguessuga, é utilizado como inibidor da trombina, apresentando também propriedades anticoagulantes. 

Soros: tema recorrente das aulas de imunologia, os mais diversos tipos de soros não poderiam ficar de fora. Sua produção se dá através da produção de anticorpos por cavalos a partir de antígenos obtidos de toxinas e venenos. Diferentes tipos de plasma são, obviamente, purificados e processados em escala industrial. Existem diversos tipos de soros, dentre eles: antibotrópico para picadas de determinadas serpentes, anticrotálico para picadas de determinadas cascavel, antiescorpiônico para picadas de determinados escorpião, antiaracnídeo para picadas de determinadas aranhas, soro antitetânico para prevenção do tétano acidental em ferimentos, soro antidiftérico para neutralizar a toxina da bactéria Clostridium difteriae, entre outros.

Com isso, podemos perceber as inúmeras aplicações da biotecnologia animal na obtenção de medicamentos, bem como uma ampla área para inovação. Cabe ressaltar a necessidade do cuidado com os animais com boas práticas, pois é necessário que seja feita a obtenção desses medicamentos sem transgredir comitês de ética, nem acarretar no sofrimento desnecessário aos animais pois devemos viver de forma sustentável e enxergá-los não como um meio para tirar proveito para o nosso conforto, e sim como um aliado numa vida saudável e em harmonia. 

Agora que sabemos mais uma das importâncias dos animais para nossas vidas, que tal lutar mais para preservá-los? Para aprofundar mais no assunto, leia mais sobre biofármacos e biocurativos aqui no Profissão Biotec.

Texto revisado por Priscila Esteves e Luana Lobo
Referências:
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