Para a produção de metabólitos de interesse, a engenharia metabólica usa de ferramentas genéticas para inserir a informação genética desejada nas suas fábricas celulares (os organismos escolhidos para produção desses compostos). Essa informação genética está presente em partes genéticas (ou blocos LEGO) que já foram apresentadas neste texto anterior da Série Especial sobre Engenharia Metabólica!
Uma das principais metas da Biologia Sintética é fazer com que essas peças padronizadas funcionem da mesma forma para todos os organismos que podem ser geneticamente modificados. Porém, a maquinaria molecular de cada organismo é muito particular e essa meta ainda está muito longe de ser realidade. Por isso, a pergunta mais importante a ser levada em consideração para construção e utilização de ferramentas genéticas para engenharia metabólica é: qual organismo será o escolhido para a produção do composto em questão?
Apesar de existirem alguns exemplos no mercado de produtos derivados de engenharia genética de células animais e de plantas, como o óleo de soja da Calyxt ou as famosas células CAR-T, os microrganismos ainda são o foco principal dos estudos. Existem vários motivos para isso, como a facilidade de manipulação e também porque tornam a produção escalável, já que podem crescer em biorreatores enormes consumindo apenas açúcares simples (ou até mesmo resíduos industriais). Nesse contexto, vamos mostrar aqui algumas das principais ferramentas genéticas utilizadas para engenheirar microrganismos atualmente.
As modificações genéticas num projeto de Engenharia Metabólica podem ser realizadas de duas maneiras principais: através do uso de um plasmídeo epissomal, que não se integra ao genoma do microrganismo hospedeiro, ou a modificação cromossômica, que altera o DNA do genoma.
1 – Vetores plasmidiais para manipulação genética
Plasmídeos são pequenas moléculas de DNA circular extra cromossomais que ocorrem naturalmente em bactérias e outros organismos. Eles são mantidos e propagados pois conferem características interessantes aos organismos que os possuem, como resistência a antibióticos e outros tipos de ameaças. A primeira vez que um plasmídeo foi geneticamente modificado em laboratório foi em 1973. A partir daí, os plasmídeos se tornaram vetores de clonagem para manipulação genética de organismos, sendo um marco muito importante para a biologia molecular. Por serem fáceis de modificar e trabalhar em laboratório, são amplamente utilizados em projetos de Engenharia Metabólica.
Hoje em dia, eles são principalmente utilizados para três propósitos diferentes: para clonagem de genes, para expressão de proteínas ou como vetores repórteres.
- Os vetores de clonagem são os utilizados para propagar uma grande quantidade de cópias do nosso gene de interesse para futuras aplicações.
- Os vetores repórteres são mais utilizados para se entender o comportamento de um gene específico, pois podemos colocar o promotor do gene de interesse modulando alguma proteína repórter, como a famosa proteína fluorescente verde, a GFP. Medindo a fluorescência emitida pela proteína GFP modulada por nosso promotor, podemos ver em quais condições nosso gene de interesse se expressa ou não.
- Já os vetores de expressão são os mais utilizados para aplicações na indústria. Eles contém promotores fortes e constitutivos – o que significa que esses promotores vão expressar o gene de interesse de forma constante durante todo o crescimento do organismo hospedeiro.
Algumas características são essenciais para que os plasmídeos exerçam sua função corretamente. Uma delas é a origem de replicação, uma sequência de informação genética que vai ser reconhecida pela maquinaria de replicação da célula hospedeira. Essa sequência vai definir não somente o número de cópias que será gerado de cada plasmídeo, mas também em qual hospedeiro esses plasmídeos poderão ser replicados (multiplicados). Algumas origens de replicação são hospedeiro-específicas, pois dependem da maquinaria celular do próprio hospedeiro, enquanto outras funcionam em uma gama maior de organismos, pois carregam no próprio plasmídeo a maquinaria que precisam para replicar. Além disso, alguns vetores, chamados de “shuttle vectors“, contém duas origens de replicação diferentes, uma capaz de replicar em bactérias e outra capaz de replicar em leveduras. Isso facilita a vida de quem precisa primeiro usar uma bactéria para realizar as clonagens – e propagar os genes de interesse – mas utiliza a levedura como hospedeiro final para a produção do metabólito de interesse.
Outra característica importante é o gene de seleção. Esses genes são essenciais quando utilizamos plasmídeos para manipulação genética pois conferem uma pressão seletiva para que o organismo mantenha o vetor replicando em suas células. Por exemplo, se o gene de seleção for um gene que confere resistência a um antibiótico e o microrganismo for mantido em um meio de cultivo de seleção contendo esse mesmo antibiótico, somente as células que mantiverem o plasmídeo com esse gene de seleção serão capazes de crescer na presença de antibiótico.
Uma terceira característica importante de um plasmídeo é o sítio de múltipla clonagem (MCS, do inglês Multiple Cloning Site) . Ele possui diferentes sequências alvo de enzimas de restrição (enzimas capazes de clivar DNA) consecutivas. Assim, podemos usar diversas combinações dessas enzimas para inserir sequências de DNA de interesse nos plasmídeos. Para saber mais sobre as enzimas de restrição e seu modo de funcionamento, leia o texto 5 ferramentas fundamentais para a Engenharia Genética
As características mencionadas acima também fazem parte do nosso catálogo de peças do nosso LEGO genético. Por isso, juntamente com promotores, genes e terminadores, quanto mais genes de seleção, sequências de origem de replicação e sítios de múltipla clonagem forem testados e caracterizados, maior será a quantidade de combinações possíveis para construir novos plasmídeos e transformar novos microrganismos.
Nesse caso, quando usamos o termo “transformar”, estamos nos referindo aos métodos para inserir os plasmídeos dentro das células do organismo hospedeiro. Para que o DNA entre em suas células, precisamos causar algum tipo de disrupção em sua membrana plasmática. Por isso, normalmente a transformação é realizada dando um choque elétrico ou um choque térmico nas células. No mundo dos microrganismos, esse tipo de transformação é mais comum para bactérias, já que fungos possuem uma parede celular protegendo sua membrana, então os métodos de transformação podem ser um pouco mais complexos.
2 – Recombinação homóloga para modificação do genoma
Apesar da construção de vetores plasmidiais ter sido uma revolução para manipulação genética, nem todos os microrganismos são capazes de manter e replicar plasmídeos em suas células. E, mais importante ainda, a expressão de proteínas em plasmídeos não é o ideal em um contexto industrial, já que eles são mais instáveis: podem ser perdidos caso a pressão seletiva reduza e podem sofrer mutações ou recombinações com mais facilidade. Para contornar esses problemas, podemos nos aproveitar de um fenômeno que ocorre naturalmente nas células chamado de recombinação homóloga.
A recombinação homóloga é um fenômeno muito importante que acontece em todas células: é responsável por reparar qualquer quebra de fita dupla que aconteça em moléculas de DNA. Para utilizar a recombinação homóloga em um contexto experimental, precisamos adicionar, nas duas extremidades do gene de interesse, sequências de DNA que sejam homólogas (ou seja, possuam a mesma sequência) a alguma região no genoma do organismo hospedeiro. Quando ocorrer a quebra do DNA naquela região específica, a célula vai utilizar a sequência que introduzimos no gene de interesse para realizar o reparo do DNA do hospedeiro, resultando na recombinação do DNA da sequência homóloga presente no gene de interesse com o DNA genômico do hospedeiro, o que necessariamente leva a edição de seu genoma. Quebras de fita dupla ocorrem com frequência em moléculas de DNA, mas aumentamos a chance da quebra acontecer porque os métodos de transformação que utilizamos para inserir os genes (como choque térmico ou elétrico) adicionam um estresse a mais às moléculas.
Normalmente as regiões onde os genes vão ser inseridos são pensados estrategicamente, podendo ser em regiões onde exista uma alta taxa de transcrição. Outra opção é escolher uma região no DNA onde a alteração desse gene vai causar uma alteração no fenótipo do organismo, facilitando o processo de seleção de mutantes positivos. Neste trabalho aqui, por exemplo, nós trocamos o gene que produz o pigmento beta-caroteno por nosso gene de interesse e, por isso, a nossa levedura que originalmente tinha a cor laranja, passou a ser branca. E, como você já deve estar se perguntando, essas sequências de recombinação também podem – e devem! – ser caracterizadas para serem incluídas no nosso “LEGO de partes genéticas”, facilitando trabalhos futuros.
3 – Outras tecnologias também permitem a edição de genomas
Duas tecnologias de edição de genomas que são muito parecidas em sua metodologia e são amplamente difundidas são as ZFNs (do inglês Zinc Finger Nucleases, ou nucleases dedo de zinco) e a tecnologia TALEN® (do inglês Transcription Activator-Like Effector Nucleases, ou nucleases efetoras semelhantes à ativadores de transcrição).
Os dois métodos se baseiam na capacidade natural de algumas proteínas encontradas em bactérias de interagirem com moléculas de DNA. Essas proteínas são então fusionadas a nucleases – enzimas capazes de “cortar” alvos específicos em sequências de DNA – formando o que chamamos de proteínas quimeras (proteínas formadas com partes de duas ou mais proteínas diferentes). Quando esses alvos são cortados, podemos inativar genes de vias de interesse, e apenas algumas pequenas deleções são adicionadas ao genoma. A tecnologia TALEN® já foi muito utilizada para modificar microrganismos geneticamente, desde o fungo filamentoso causador da doença da explosão do arroz, responsável pelas maiores perdas de cultivos de arroz, e até mesmo para ampliar a capacidade biotecnológica de algas diatomáceas!
Além das ZFNs e TALEN®, a tecnologia de edição de genoma mais importante da atualidade e ganhadora do Nobel de Química de 2020 é a tecnologia CRISPR/Cas9. Este outro artigo do Profissão Biotec explica direitinho como aconteceu essa descoberta revolucionária – visto que a maquinaria de CRISPR era originalmente o sistema imune de bactérias e foi adaptado para a edição gênica – e como o método funciona. Com essa técnica, um RNA guia pode ser facilmente desenhado para direcionar a nuclease Cas9 para uma sequência de DNA alvo, podendo levar à substituição, deleção ou inserção de sequências de DNA naquela região.
Algumas das vantagens da tecnologia CRISPR em comparação com as outras técnicas de edição de genomas são: custo-benefício, já que o processo de síntese das sequências necessárias tem se tornado cada vez mais barato, sua alta especificidade, facilidade de manipulação e de design, além da possibilidade de escalonamento, visto que muitas moléculas de RNA guias podem ser introduzidas na célula de uma vez. Ironicamente, já que o CRISPR é o sistema de defesa das bactérias, a startup de biotecnologia Locus Biosciences está utilizando a tecnologia CRISPR para desenvolver antimicrobianos que consigam justamente eliminar bactérias resistentes a antibióticos, as também chamadas de “superbactérias”.
Saiba mais sobre essas três técnicas acessando o texto 3 técnicas revolucionárias para a edição do DNA.
Um método para todos governar?
Como vimos, a Biologia Sintética está fazendo um bom trabalho na padronização de partes para tentar universalizar as ferramentas genéticas destinadas à Engenharia Metabólica. Estamos criando um enorme repositório de peças de LEGO para nosso catálogo. Essas peças podem ser combinadas de diversas formas para serem inseridas nos organismos hospedeiros diretamente por plasmídeos ou pelos métodos de edição de genomas citados. No entanto, como cada projeto e cada microrganismo tem suas peculiaridades, nosso LEGO genético estará sempre em construção.
Infelizmente, ainda não encontramos o “Anel de Sauron” da Engenharia Metabólica, aquela metodologia que vai governar todas as outras. Por isso, é importante entender não somente a pergunta que quer ser respondida e qual produto quer ser produzido, mas também a biologia e o comportamento metabólico do hospedeiro de interesse, a fim de decidir qual a melhor metodologia a ser aplicada em cada caso.
A engenharia de microrganismos não é uma tarefa fácil. Mas, a cada dia que passa – com a baixa nos preços de síntese de moléculas e a cada nova descoberta dos cientistas – essa tarefa vai ficando um pouco menos árdua. Em vista disso, estamos rumando para um mundo onde a maior parte dos químicos vai ser substituída por alternativas biológicas. Alguns exemplos dessas alternativas vão ser abordadas nos próximos textos da série sobre Engenharia Metabólica. Então, não percam as próximas publicações e venham entender melhor como a Engenharia Metabólica está revolucionando a indústria e nos ajudando a buscar um futuro melhor para o planeta.
Cite este artigo:
NORA, Luísa Czamanski;SILVA-ROCHA, Rafael. Ferramentas genéticas usadas para engenheirar microrganismos: inserção genômica. Revista Blog do profissão Biotec, v7, 2021.