Matematicamente, um ponto de inflexão representa o ponto onde a taxa de variação da tendência de uma linha muda de negativa para positiva ou vice-versa. Parece complicado, não?! Porém, trazendo este termo para a História, ele toma um sentido extremamente importante e mais tranquilo de se entender.
Basicamente, nesta área do conhecimento, um ponto de inflexão é um momento específico em que o mundo mudou e nunca mais foi o mesmo. São momentos da história em que houveram mudanças tão rápidas e brutais que a sociedade não foi capaz de assimilar tudo na mesma velocidade.
Para muitos, as guerras e as disputas políticas são tidas como os principais momentos de mudança pelos quais o mundo já passou. No entanto, existe um causador de ponto de inflexão que quase sempre nos esquecemos, mas que, atualmente, está em alta: As pandemias. Mas como essas situações transformam nossa sociedade e, principalmente, nossa forma de fazer Ciência?
Os legados da Peste Bubônica e da Gripe Espanhola
Entre os anos de 1347 e 1351, ocorreu na Europa, a pandemia mais devastadora registrada na história, que resultou na morte de 75 a 200 milhões de pessoas. A Peste Bubônica, como ficou conhecida, era assustadoramente contagiosa: “o simples toque nas roupas parecia levar a doença a quem tocava”, escreveu o poeta italiano Giovanni Boccaccio
Já em 1918, foi a vez da Gripe Espanhola devastar o mundo. Foram mais de 50 milhões de mortes e estima-se que cerca de um terço da população mundial foi infectada com uma mutação do vírus Influenza (H1N1), que se espalhou das aves para os humanos.
Dessa forma, diante de tanto caos, o mundo e, principalmente, a Ciência precisaram refletir e criar medidas que impedissem a contínua propagação dessas doenças. O legado que essas pandemias deixaram para nós foi extremamente importante, pois ele nos forneceu o conhecimento necessário para enfrentar novos períodos como este. Basicamente, essa herança gira em torno de três esferas:
Prevenção: A importância do desenvolvimento de vacinas e da imunização de populações contra todas as formas de vírus, incluindo doenças infantis comuns, como tuberculose, sarampo e poliomielite, provém destes períodos epidêmicos passados. Curiosamente, a pesquisa médica sobre as diferentes cepas do vírus encontradas na gripe “espanhola” continua até hoje. Novas descobertas dessas pesquisas auxiliam no desenvolvimento de vacinas para proteger o público de futuras pandemias de influenza.
Forma de combate: Outra lição deixada por esses surtos é que a intervenção rápida e precisa é crucial para evitar os piores estágios de contaminação. As cidades em que as autoridades de saúde pública impuseram várias medidas de contenção social obtiveram taxas de mortalidade duas vezes menores em comparação com as cidades que esperaram algumas semanas para responder. Isso nos permitiu desenvolver diversos métodos, protocolos e, mais recentemente, softwares que nos auxiliam no controle e manejo de períodos epidêmicos.
Conhecimento: Conforme descrito por David Herlihy em “A Peste Negra e a Transformação do Oeste”, mais ênfase foi dada às “investigações anatômicas” após a Peste Bubônica. A maneira como os indivíduos estudavam o corpo humano mudou notavelmente. Nos últimos tempos, a Medicina vem tentando estudar a população em diferentes estados de saúde e, na maioria das vezes, relacionando este estado com fatores psicológicos, ambientais,físicos e comportamentais.
Além disso, uma teoria apresentada por Stephen O’Brien (geneticista) diz que a Peste Negra é provavelmente responsável, por meio da seleção natural, pela alta frequência do defeito genético CCR5-Δ32 em pessoas de ascendência europeia. O gene afeta a função das células T e fornece proteção contra o HIV, a varíola e, possivelmente, a peste embora sobre este último ainda não exista nenhuma explicação completa.
E como será a Ciência após a pandemia de COVID-19?
Rápida comunicação
A pandemia do novo coronavírus trouxe ao mundo um novo desafio que colocou em prova toda nossa capacidade de gerar conhecimento em um curto período de tempo. Desde o início, os cientistas agiram com velocidade sem precedentes e ação coordenada para nos entregar um arsenal de armas médicas para enfrentarmos essa ameaça global.
A vontade singular de estudiosos, em todo o mundo, de compartilhar novas ideias e dados de forma imediata e transparente, em alguns casos bem antes da pesquisa estar totalmente formada, foi fundamental para alcançarmos informações e respostas sobre essa nova doença.
Logo nas primeiras semanas após o primeiro caso de COVID-19, pesquisadores chineses identificaram o possível vírus causador da doença e decodificaram uma sequência inicial de seu genoma. Foi uma conquista fantástica e em pouquíssimo tempo. Para completar, os pesquisadores publicaram a sequência em um fórum de discussão aberto online e encorajaram um pesquisador em Sydney (Austrália) a compartilhá-la pela rede social Twitter com o mundo.
A partir disso, milhares de cientistas passaram a publicar suas pesquisas e conhecimentos sobre o novo vírus em questão. Estudos como as similaridades do vírus com o SARS-CoV-1 e sua árvore patogênica foram instantâneamente compartilhados em rede aberta. Claramente, a pandemia criou um ambiente de pesquisa inteiramente novo, estruturado na colaboração e comunicação rápida e mútua.
Desenvolvimento de imunizantes
Além das transformações nos métodos utilizados para se comunicar, uma segunda alteração observada no campo da ciência se relaciona diretamente com o desenvolvimento de imunizantes. A pandemia de COVID-19 levou instituições e companhias do mundo inteiro a participarem de uma “corrida” pela produção de vacinas como nunca antes vista.
É difícil dizer exatamente o que o futuro reserva, mas mesmo que o atual foco intenso na criação da vacina COVID-19 comece a perder força em alguns meses, é difícil acreditar que algo na escala desta pandemia não tenha um impacto duradouro e positivo na indústria biotecnológica, principalmente devido a implementação de novas metodologias, como o desenvolvimento de imunizantes baseados na utilização de DNA e RNA. Nunca na história, tanta atenção e investimento foram direcionados a esta área como ocorreu nestes dois anos.
No entanto, não é só a indústria que se beneficiou desse processo, a área acadêmica também obteve grande destaque na produção de imunizantes. Universidades como a University of Oxford, o Imperial College of London e a University of Pittsburgh se mostraram na linha de frente na luta contra o vírus. As instituições de ensino brasileiras também não ficaram de fora destas pesquisas. Em 2020, o Brasil ocupava o décimo primeiro lugar entre os países que mais publicaram artigos sobre a doença.
Divulgação científica
Por fim, uma mudança contraditória se desenvolveu durante este período pandêmico. Como as divulgações de pesquisas e artigos científicos em jornais muito respeitados são muito competitivas e demandam muito tempo, pesquisadores do mundo todo passaram a compartilhar os preprints (versões de seus estudos ainda não revisadas por revisores científicos), visando não só reconhecimento, mas também ajudar aqueles que trabalham no combate à doença.
Entre março e novembro de 2020, cerca de 75.000 artigos científicos foram publicados, sendo que, um terço foi divulgado para outros cientistas e para o público em geral antes de serem totalmente revisados e aceitos para publicação em jornais científicos. Com isso, esses jornais se viram obrigados a “abaixar a guarda” para algumas exigências, permitindo assim que artigos relacionados a Covid-19 fossem publicados mais rapidamente.
No entanto, essa velocidade na publicação dos dados trouxe algumas desvantagens. Ainda em 2020, dois estudos sobre a Covid-19 foram retirados do ar devido a preocupações sobre a veracidade de seus dados. Alguns periódicos admitiram que precisarão desacelerar o processo novamente para garantir a qualidade do trabalho a ser publicado.
A partir disso, torna-se bem claro que a pandemia do novo coronavírus alterou nossa forma de trabalhar, compartilhar e publicar dados científicos. Ainda não podemos comprovar que essas características perdurarão pela história daqui para frente, porém, com toda certeza, esta doença, assim como pandemias passadas, provocou exponenciais mudanças na nossa Ciência, deixando um evidente legado e tornando-se um importante ponto de inflexão.
Cite este artigo:
ENRICI, A. W. A influência da COVID-19 na Ciência. Revista Blog do Profissão Biotec, v.8, 2021. Disponível em:<https://profissaobiotec.com.br/influencia-da-covid-19-na-ciencia/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
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