Após ser renegada por décadas, a pesquisa envolvendo o RNA mensageiro (mRNA) no combate a doenças, desenvolvida pela bioquímica húngara Katalin Karikó, foi a chave para a produção em tempo recorde da primeira vacina contra o coronavírus.
Essa tecnologia ágil e inovadora foi a utilizada, por exemplo, na produção das vacinas das gigantes Pfizer/BioNTech e Moderna.
RNA mensageiro: o Hermes do sistema imunológico
Assim como Hermes que, de acordo com a mitologia grega, era o mensageiro dos deuses, o mRNA é o mensageiro das células do nosso sistema imunológico, trazendo as informações necessárias ao combate de diversas doenças.
Existem 2 classes de RNA, sendo elas a dos RNAs funcionais e dos RNAs mensageiros. Na primeira classe, tem-se RNAs que não são capazes de codificar proteínas, produzindo um outro RNA ao final do processo. Ao passo em que na segunda classe mencionada, a dos RNAs mensageiros, há a codificação do material genético para a produção de proteínas.
Nas nossas células, o RNA (ácido ribonucléico) atua como a molécula responsável por carregar as informações que serão utilizadas para a produção de proteínas, as quais serão sintetizadas, ou seja, produzidas de fato, por estruturas presentes nas nossas próprias células, chamadas de ribossomos.
E foi exatamente a partir desse mecanismo que os pesquisadores encontraram uma forma de fazer com que o RNA mensageiro carregasse uma parte do código genético responsável pela produção da proteína spike do SARS-CoV-2.
Como funciona a vacina de RNA? Ela pode afetar meu DNA?
A vacina de RNA mensageiro carrega a receita, ou seja, o código genético que vai ser usado pelas células do nosso organismo para a produção da proteína spike do coronavírus. E essa proteína é um dos principais alvos das células do nosso sistema imunológico no combate à COVID-19.
Essa vacina atua expondo o organismo receptor à proteína viral, como se tivesse sido infectado pelo vírus de fato. Os anticorpos e linfócitos T do nosso sistema imunológico reconhecem a proteína spike como um antígeno, ou seja, um invasor, de forma que nosso organismo não desenvolva a doença, mas saiba combatê-la caso a contraia.
E atenção: não, ela não vai afetar seu DNA! O RNA mensageiro que está dentro da vacina, assim como qualquer outro mRNA exógeno, é destruído pela célula. Sendo assim, ele é incapaz de entrar no núcleo das nossas células, uma vez que é traduzido pelos ribossomos no citoplasma celular, e não consegue afetar o nosso material genético.
Mas por que essa tecnologia é tão inovadora em comparação às tecnologias de produção de vacinas já disponíveis? Quais as vantagens em se produzir esse tipo de vacina? Geralmente, são utilizadas para a produção de vacinas, uma versão atenuada ou inativada do vírus. Como utilizam somente o código genético do organismo causador da doença, uma vacina de mRNA pode ser desenvolvida de maneira muito mais rápida.
Ao passo em que, para a produção rápida e em grandes quantidades de vacinas de vírus atenuado ou inativo, seria necessário o cultivo de uma enorme quantidade do vírus, o que dificulta a produção em larga escala desse tipo de vacina. As vacinas de mRNApodem ser produzidas em larga escala e a agilidade da técnica também a torna um trunfo contra novas variantes do vírus, podendo ser produzida rapidamente com o material genético do vírus que sofreu mutação.
Vale lembrar que, apesar da tecnologia utilizada nesse tipo de vacina ser realmente ágil e inovadora quando em comparação a outras, o maior risco agora é o de não estar vacinado. Todas as vacinas disponíveis contra o SARS-CoV-2 são confiáveis e eficazes. Vacine-se e vacine os seus.
Do descrédito à futura candidata ao Nobel: conheça Katalin Karikó, a cientista que sempre acreditou no potencial do mRNA
Em 1985, Katalin Karikó saiu da Hungria, onde residia com seu marido e sua filha, para assumir uma vaga de pós-doutorado na Universidade de Temple (Filadélfia). Em seu país de origem, trabalhar com mRNA era algo sem futuro, devido à instabilidade e toxicidade do mRNA e visto às grandes descobertas da época acerca do DNA.
No entanto, ao chegar nos Estados Unidos, Katalin se deparou com mais descrença em seu trabalho. Após desentendimento com o chefe da Universidade de Temple, a pesquisadora deu continuidade em seu trabalho na Universidade da Pensilvânia. Porém, seu trabalho envolvendo o uso do mRNA no combate à doenças foi considerado muito arriscado, tanto clinicamente, quanto financeiramente.
Em 1995, após ter diversos pedidos de financiamento para sua pesquisa rejeitados, Katalin descobriu também que estava com câncer.
Mas, pelo visto, “desistir” não é um verbo do vocabulário dela.
Ao decidir se associar ao seu ex-colega da Universidade da Pensilvânia, o imunologista Drew Weissman, Katalin pôde resolver os problemas relacionados à resposta inflamatória exacerbada e toxicidade do RNA mensageiro. A solução se deu através da descoberta de qual nucleotídeo era o responsável pela alta resposta inflamatória e toxicidade, substituindo o mRNA por uma versão sintética, a qual não apresenta toxicidade.
Atualmente, aos 65 anos, Karikó é vice-presidente sênior da BioNTech, e sua descoberta foi a base para a primeira vacina desenvolvida contra a COVID-19. Nomes consagrados, como o de Derek Rossi, um dos fundadores da farmacêutica Moderna, apontam Karikó e Weissmann como futuros candidatos em potencial ao prêmio Nobel, devido à grande contribuição das suas pesquisas para a humanidade.
O que o futuro, ou melhor, a pesquisa envolvendo mRNA nos reserva?
As vacinas de mRNA tem, sem dúvidas, um futuro brilhante pela frente. Principalmente, no que diz respeito às doenças consideradas “intratáveis”, tais como HIV, câncer e doenças autoimunes.
A gigante farmacêutica Moderna, após o sucesso das vacinas contra o SARS-CoV-2 promete, ainda em 2021, iniciar os testes em humanos da vacina contra o vírus do HIV. Além disso, a empresa está desenvolvendo uma vacina contra o citomegalovírus, vírus causador de anomalias congênitas, capaz de infectar bebês durante a gestação ou no momento do nascimento.
A Moderna pretende também aplicar a tecnologia de mRNA para o tratamento de doenças como o câncer.
Em relação a doenças autoimunes, a farmacêutica BioNTech tem utilizado mRNA para tratamento de camundongos que tiveram seus genes modificados para desenvolver uma doença autoimune semelhante à esclerose múltipla. Foi observado que, nos camundongos, o tratamento com mRNA pareceu ajudar a interromper o ataque do sistema imunológico, ao passo em que foi capaz de manter o restante do sistema imunológico íntegro.
Dessa forma, as vacinas de mRNA constituem uma tecnologia promissora, que traz esperança frente a doenças que antes pareciam sem tratamento e sem solução. O futuro dessa ciência é, sem dúvidas, brilhante.
Cite este artigo:
GODOY, B. R. B. Os mensageiros da inovação: o mRNA e a pesquisadora que revolucionou a produção de vacinas. Revista Blog do Profissão Biotec, v.8, 2021. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/mensageiros-da-inovacao-mrna-pesquisa-que-revolucionou-a-producao-de-vacinas/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências
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Cientista “rebaixada” teve trabalho usado como base da vacina contra o Covid-19. CNN Brasil. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/2020/12/17/cientista-rebaixada-teve-trabalho-usado-como-base-da-vacina-contra-o-covid-19> Acesso em: 22 de julho de 2021.
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Especial Vacinas – o que você precisa saber sobre como agem e como são produzidas. Profissão Biotec. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/especial-vacinas-o-que-voce-precisa-saber-sobre-como-agem-produzidas/> Acesso em: 21 de julho de 2021.
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What is mRNA? The messenger molecule that’s been in every living cell for billions of years is the key ingredient in some COVID-19 vaccines. The Conversation. Disponível em: <https://theconversation.com/what-is-mrna-the-messenger-molecule-thats-been-in-every-living-cell-for-billions-of-years-is-the-key-ingredient-in-some-covid-19-vaccines-158511> Acesso em: 23 de julho de 2021.
Fonte da imagem destacada: Pixabay.