Este texto é o primeiro da série Engenharia Metabólica – hackeando a biologia.
“Eu não quero escutar essa palavra – impossível” disse Bob Swanson em 1978, quando duvidaram que seria possível produzir insulina humana em bactérias. Até aquele momento, a insulina utilizada para o tratamento de pessoas com diabetes provinha do pâncreas de animais abatidos, que além de ser um processo de purificação trabalhoso, também poderia causar reações imunológicas nos pacientes devido às diferenças estruturais das moléculas.
Com o desenvolvimento da biotecnologia para a produção de insulina recombinante em bactérias, o rendimento de produção e a qualidade de vida dos diabéticos foram completamente transformados. Bob Swanson e Herb Boyer foram os pioneiros na área e abriram a primeira empresa de biotecnologia moderna do mundo, a Genentech, que iniciou uma nova era: a criação de células geneticamente modificadas para produzir moléculas de interesse.
A produção de uma proteína humana (insulina) em células bacterianas é possível por um fator: o código genético, ou seja, a lógica de armazenamento de informação no DNA, é universal. O DNA é a molécula que guarda informações genéticas para “produzir” um ser vivo inteiro, determinando onde, como e quais proteínas devem ser produzidas. Devido a esta característica universal do código genético, conseguimos fazer com que um gene de um determinado ser vivo possa ser compreendido em outro. Desta forma, a bactéria consegue entender a codificação do DNA para produção de insulina, embora ela nunca tenha visto esse gene antes.
Com o avanço do conhecimento científico sobre como os seres vivos funcionam e o desenvolvimento de técnicas de manipulação genética em laboratório, conseguimos hoje fazer cópias de DNA e modificar organismos com muita rapidez e eficiência. Essas novas habilidades nos permitem não só transferir um gene de um organismo para outro para produzir uma proteína de interesse (como no caso da insulina humana), mas também transferir vários genes que codificam enzimas (proteínas que aceleram reações químicas) e assim produzir outros tipos de compostos. As enzimas fazem parte de rotas metabólicas, que são sequências de reações químicas que ocorrem dentro das células dos organismos vivos. Um exemplo de rota metabólica é a quebra da glicose para a produção de energia e gás carbônico (CO2), representada em parte na figura abaixo.
A Engenharia Metabólica é uma área de conhecimento de surgiu em torno dos anos 90 e se baseia na transferência e/ou reconstrução de rotas metabólicas inteiras de um organismo ao outro para a produção de uma ou mais moléculas de interesse. Para atingir esse objetivo, são utilizados os conhecimentos de Biologia Sintética. Esta pode ser definida como o design e a construção de módulos e sistemas biológicos para o desenvolvimento de novas funcionalidades não existentes na natureza, como novas combinações de “partes genéticas” (genes, promotores, etc.) ou até mesmo a criação de novas partes.
Para o desenvolvimento de projetos de Engenharia Metabólica, é necessário escolher uma célula ou organismo hospedeiro, que receberá as modificações genéticas. Em geral, utilizam-se microrganismos como bactérias, fungos, leveduras e microalgas, mas as plantas também são muito estudadas para este fim. Para produtos farmacêuticos, é comum a utilização de cultura de células de mamíferos e não o organismo completo. É preferível ter uma grande quantidade de informações e estudos anteriores sobre o organismo escolhido (campo de estudo da Biologia Sistêmica), pois ajuda no planejamento e execução da estratégia. Nos próximos textos desta série, vamos focar no uso de microrganismos como hospedeiros.
A imagem abaixo mostra como é a lógica de um projeto de engenharia metabólica usando um organismo muito simples e fácil de se trabalhar em laboratório: uma levedura. Nesse caso, a fim de inserir uma nova rota metabólica, é necessário transferir dois genes/enzimas de outros organismos (camundongo e água-viva) e remover (ou “deletar”, na linguagem de laboratório) outros dois genes nativos de levedura que são parte de vias “competitivas”. Após realizar estas ações, a levedura torna-se capaz de produzir um novo produto.
Por que fazer Engenharia Metabólica?
Até aqui, foi explicado o que é e como é realizado um projeto de Engenharia Metabólica. No entanto, ainda fica a dúvida: por que modificar os seres vivos?
A Engenharia Metabólica permite a construção de organismos mais eficientes na produção de moléculas de interesse industrial que os organismos não modificados. Isso significa maior rendimento, eficiência e menor custo. Além disso, os projetos de Engenharia metabólica podem gerar um produto igual ou semelhante ao natural com maior qualidade e menor impacto ambiental.
No entanto, uma das maiores relevâncias desta área encontra-se na capacidade de substituir a matriz fóssil por renovável. Isso significa que, usando organismos vivos, podemos obter plásticos, combustíveis, solventes, aditivos químicos, aromatizantes, entre outros a partir de matérias-primas sustentáveis (como a açúcar da cana-de-açúcar) ao invés de petróleo. Desta forma, os impactos ambientais causados pelo uso de petróleo, como o aumento da concentração de carbono na atmosfera que causa o aquecimento global, são diminuídos.
Um outro exemplo de aplicação é a produção de vanilina, principal componente do extrato da baunilha (Vanilla planifolia) e um aromatizante amplamente utilizado em alimentos, bebidas e produtos farmacêuticos.
A vanilina é encontrada em concentrações entre 1 e 2% nas vagens de baunilha curadas, ou seja, o rendimento de produção é muito baixo. Além disso, o manejo da planta é muito trabalhoso, uma vez que a maior parte da polinização tem que ser realizada manualmente. Desta forma, a demanda de vanilina rapidamente ultrapassou a sua disponibilidade no mercado e foram desenvolvidos rotas químicas para sua produção, que hoje representam cerca de 97% da demanda total e tem uma projeção de crescimento anual de 8,4% até 2024.
Normalmente, a vanilina é produzida por conversão química, mas existem diversas pesquisas científicas para a produção de vanilina através de microrganismos modificados por engenharia metabólica, isso evita o uso de solventes orgânicos e outros químicos perigosos. É um processo muito mais rentável que a extração de vagens de baunilha e mais sustentável que a síntese química e já está sendo comercialmente aplicado pela empresa americana Conagen.
Na indústria farmacêutica, já existem diversos produtos no mercado produzidos por organismos ou células geneticamente modificados (estão dentro da categoria “Biofarmacêuticos”). Podemos citar a própria insulina (produzida em bactérias) e o hormônio de crescimento humano (produzido em cultura celular in vitro), entre outros. Um exemplo de sucesso para a indústria química é o farneseno, um hidrocarboneto produzido a partir de açúcar por uma levedura geneticamente modificada desenvolvida pela empresa Amyris e que serve para a produção de diversos compostos, substituindo o petróleo. A Engenharia Metabólica nos auxilia na produção dos mais diversos tipos de moléculas.
Se a área é tão promissora, por que ainda não é amplamente utilizada?
Há alguns anos atrás, realizar modificações genéticas não eram assim tão simples. Hoje em dia, com o avanço da ciência, o desenvolvimento da tecnologia CRISPR-Cas9 (que resultou no Nobel em Química deste ano) e avanços em robotização de processos de laboratório, conseguimos acelerar bastante os projetos de Engenharia Metabólica.
Ainda assim, esse não é o maior desafio. Ainda não entendemos completamente como funcionam os seres vivos e, muitas vezes, não é intuitivo e nem fácil descobrir qual é a melhor enzima para determinada rota metabólica ou quais genes precisam ser “deletados”. Muitas vezes os projetos são executados na tentativa e erro, embora novas tecnologias como Machine Learning e Inteligência Artificial estejam acelerando o conhecimento nessa área. A ciência básica ainda tem um longo caminho para percorrer na compreensão do funcionamento dos seres vivos.
Por fim, outros desafios que não estão relacionados com a parte técnica envolvem o alto custo do processo fermentativo e da matéria-prima (especialmente quando comparada ao petróleo). A disponibilidade de matéria-prima também é um desafio, uma vez que normalmente utiliza-se o açúcar oriundo de plantas e isso demandaria um aumento no uso de terras para plantação, gerando uma competição com terras usadas para cultivo de alimentos. Com o avanço da tecnologia, o uso de matérias-primas alternativas, rejeitos agroindustriais (como o glicerol) e a busca por soluções mais sustentáveis, esses desafios devem ser superados nos próximos anos.
Como a Engenharia Metabólica vai revolucionar o mundo?
A Engenharia Metabólica não se restringe a apenas um segmento da indústria – envolve um conjunto de ferramentas que podem ser aplicadas em saúde humana, agricultura e alimentos, indústria química, meio ambiente, etc. Por ser uma tecnologia que melhora processos e produtos e os torna mais sustentáveis, tem potencial de transformar a indústria de fóssil para renovável, de químico para biológico.
Um relatório desenvolvido pela McKinsey, empresa de consultoria estratégica, destaca o potencial da “Biorevolução”: cerca de 60% dos produtos físicos poderiam ser produzidos biologicamente. Destes, um terço são materiais biológicos (como madeira) e o restante poderia ser desenvolvido por processos biológicos inovadores, como os bioplásticos. E é esta principal atuação de Engenharia Metabólica.
Além disso, ferramentas como as de Engenharia Metabólica podem ser fundamentais para a criação de uma economia sustentável, baseada nos princípios da Economia Circular, ou seja, na eliminação de resíduos (transformando-os em biogás por fermentação com microrganismos, por exemplo) e no contínuo uso de recursos.
O futuro é Bio, e a Engenharia Metabólica vai ajudar a construir esse caminho!
Este é o primeiro texto da série “Engenharia Metabólica – hackeando a biologia”. Continue acompanhando o Profissão Biotec e não perca os próximos!
Texto revisado por Natália Videira, Isis Venturi Biembengut e Rafael Silva-Rocha, PhD
Referências Bibliográficas
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