A resposta à pandemia de COVID-19 teria sido completamente diferente caso as vacinas de RNA mensageiro (RNAm) não tivessem sido desenvolvidas em tempo recorde. Desde então, muito tem se falado sobre essa tecnologia, principalmente sobre o grande impacto que ela terá no futuro.
Poucos sabem que as terapias de RNA vão muito além de vacinas, com grande potencial para tratamento de câncer, doenças raras e, por incrível que pareça, como controle biológico em agricultura.
Como funciona a terapia de RNA?
Vamos voltar um pouco a sala de aula do colégio. Classicamente se ensina que há três tipos de RNA: RNAm, RNA transportador (RNAt) e RNA ribossômico (RNAr). Esses dois últimos chamamos de RNAs não codificantes, ou seja, RNAs que não vão ser traduzidos em proteínas.
Entretanto, nos últimos 20 anos foram descobertos outros RNAs não codificantes, sendo os RNAs de interferência (RNAi) mais importantes. Estudos recentes mostram que esses RNAs regulam a expressão de proteínas e alteram o perfil de células e tecidos, com grande potencial terapêutico.
Sabendo disso, as terapias de RNA atuam nesses dois alvos: RNAm e RNAi. Para atacarmos esses alvos, há três estratégias utilizadas:
- Oligonucleotídeos antisenso. Essa estratégia utiliza sequências pequenas e específicas de DNA (como um primer de PCR) que se ligam em regiões do RNA alvo. Em geral, há dois mecanismos de ação: degradação do RNAm; e alteração do splicing alternativo que dá origem ao RNAm. Há alguns medicamentos aprovados pela agência de saúde dos EUA (Food and Drug Administration, FDA) para essa tecnologia, como em terapias para tratar atrofia muscular espinhal (medicamento Nusinersen).
- Pequenos RNAs de interferência (siRNAs). O sistema de RNA interferência envolve pequenos RNAs que regulam a expressão gênica. Esse mecanismo foi descoberto em diversos organismos, incluindo plantas, fungos e células animais (essa descoberta rendeu um prêmio Nobel). Sabendo desse mecanismo, é possível sintetizar pequenos siRNAs que degradam RNAm envolvidos em doenças (veja o Handbook de RNAi para maiores informações). O medicamento mais recente desenvolvido é o Inclisiran que degrada o RNAm do gene PCSK9. Esse medicamento foi aprovado pelo FDA para tratar pessoas que apresentam altos níveis de colesterol.
- RNAs mensageiros. Essa forma de terapia foi a utilizada nas vacinas de RNAm, como a comercializada pela farmacêutica Pfizer. Nesse tipo de terapia, RNAm exógenos são internalizados pelas células, que os utilizam para traduzir em proteínas. Essa terapia pode ser utilizada de duas formas:
- Complementar ou repor a expressão de proteínas em indivíduos com deficiência genética;
- Como vacina para tratamento de doenças infecciosas e diversos tipos de câncer
No caso do câncer, os neoantígenos (novas proteínas encontradas apenas no câncer) podem ser utilizados na produção personalizada de vacinas de RNAm. Essas vacinas têm o potencial de produzir respostas altamente específicas contra o tumor, aumentando o efeito terapêutico e reduzindo os efeitos adversos.
Qual a vantagem das terapias de RNA?
O foco em medicamentos e terapias baseadas em RNA é sustentado por diversas vantagens que comentamos abaixo:
- Permite atuar em alvos terapêuticos para os quais é difícil desenvolver um medicamento convencional: Como os alvos de RNAs são sequências específicas, é possível produzir terapias que seriam muito difíceis de serem desenvolvidas por medicamentos convencionais, baseados em moléculas químicas. Isso permite desenvolver tratamentos personalizados para doenças raras e câncer, por exemplo.
- Síntese industrial rápida e eficiente, por meio de dois tipos de produção::
- Síntese de RNAs pequenos (oligonucleotídeos; 20 – 70 pares de base): a produção é feita de forma química, pela adição de nucleotídeos, em processo similar à produção de primers (mais informações em Oligonucleotide Synthesis for Therapeutics )
- Síntese de RNAs grandes (em geral RNAm entre 2000 – 4000 pares de base): a produção é feita por reação enzimática in vitro em biorreatores (mais informações em mRNA Production | Thermo Fisher Scientific )
- Efeito terapêutico duradouro. Embora os RNAm sejam conhecidos por serem degradados rapidamente, mudanças no desenho permitem aumentar a sua estabilidade. Além disso, há novas formas de encapsulamento com nanopartículas de lipídeos que permitem protegê-lo de forma mais eficiente (mais informações em Vivofectamine™ Delivery Solutions).
Em relação a estabilidade, novos estudos mostram o potencial de RNAs que se autoamplificam para aumentar o poder terapêutico. Essas novas tecnologias permitirão reduzir a quantidade de RNA necessária para terapia, reduzindo o custo por dose.
- Riscos de efeitos adversos menores do que terapias com vírus. Antes do uso de RNAm, os vírus têm sido utilizados com ferramentas para vacinas e terapias. Embora sejam seguros, os vetores virais têm que ser monitorados para que não haja possibilidade de integração genômica. No uso de RNA não há essa preocupação, facilitando os estudos pré-clínicos.
RNAs como solução na agricultura
Os RNAs não ficam limitados somente à área médica. Na agricultura, há uma grande pressão para descobrir novas formas de controlar patógenos e proteger os cultivos contra pragas. Uma das mais novas estratégias é utilizar o sistema de RNA de interferência que existe em plantas, fungos, insetos e nematóides. Nesse caso, há duas estratégias que estão sendo avaliadas: desenvolver plantas transgênicas que expressam o siRNA, ou tratar as plantas com siRNA externo.
A primeira planta transgênica com siRNA foi aprovada nos EUA em 2017 (nome comercial, SmartStax Pro) para proteger o milho contra o besouro chamado Diabrotica virgifera. Entretanto, para reduzir o impacto regulatório de alimentos transgênicos, há diversos estudos que buscam desenvolver formas de aspergir siRNA sobre plantações.
Há diversas vantagens de uso de siRNA em agricultura. A primeira é que os siRNAs são altamente específicos, reduzindo os efeitos danosos para espécies nativas. Segundo, caso ocorra uma resistência, é mais fácil adaptar o siRNA para que ele volte a ter eficácia. Terceiro, no caso do uso de siRNA externo, o RNA é conhecido por degradar de forma mais rápida, causando menor impacto no ambiente e no consumo humano. Esse último ponto também pode vir a ser uma desvantagem pois pode aumentar os custos de aplicação.
Futuro das novas terapias
Estamos vivendo um tempo de transição radical na forma como vamos desenvolver novas terapias. Antigamente, o modelo era quase sempre baseado na descoberta de fármacos químicos. Entretanto, esse modelo tradicional cada vez menos aprova medicamentos inovadores, enquanto as biofarmacêuticas estão revolucionando no tratamento oncológico e doenças raras. Nas terapias de RNA, o uso das vacinas de RNAm em larga escala foi apenas o começo de uma nova era de tratamentos moleculares. O mundo, incluindo o Brasil, precisa se preparar para dominar e desenvolver essa tecnologia para permitir o acesso a essa nova fronteira.
Cite este artigo:
REZENDO, V. B. RNA como terapia: muito além da vacina. Revista Blog do Profissão Biotec, v.10, 2023. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/rna-como-terapia-muito-alem-da-vacina/>. Acesso em: dd/mm/aaaa,
Referências
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MEZZETTI, B. et al. RNAi: What is its position in agriculture? Journal of pest science, v. 93, n. 4, p. 1125–1130, 2020.
MUHONEN, P.; SIKKA, S. The next wave of RNA therapeutics. Disponível em: <https://themedicinemaker.com/manufacture/the-next-wave-of-rna-therapeutics>. Acesso em: 10 nov. 2022.
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Fonte da imagem destacada: ThermoFisher.