Sanear é sinônimo de tornar saudável. Nesse sentido, o saneamento está associado à melhoria da qualidade de vida e ao desenvolvimento de um país.
Confira como a Biotecnologia pode contribuir para a universalização do acesso ao saneamento e, consequentemente, para melhoria da saúde pública.
O que é saneamento?
O saneamento básico é o conjunto de serviços e infraestruturas aplicados para realizar:
- o abastecimento de água potável;
- o esgotamento sanitário, que abrange as etapas de coleta, transporte, tratamento e disposição final dos esgotos no ambiente;
- a limpeza urbana e o manejo de resíduos sólidos, que envolvem as etapas de coleta, tratamento e destino final do lixo, entre outras atividades;
- a drenagem e manejo das águas pluviais (água da chuva).
No Brasil, o acesso ao saneamento básico é assegurado pela Constituição Federal e pela Lei 11.445/2007, alterada recentemente pela Lei 14.026/2020.
Em nível mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece o direito humano à água potável e ao saneamento. Ambos são alvo, inclusive, de um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, o ODS 6.
Mas por que o saneamento básico é tão importante a ponto de ser considerado essencial para a garantia da qualidade de vida?
Qual a importância do saneamento?
Talvez você já tenha ouvido ou lido a informação que “a cada 1 real investido em saneamento, 4 reais são economizados em saúde pública”. Recentemente, um levantamento brasileiro calculou que cada real investido em saneamento resulta em pouco mais de 29 reais em benefícios sociais, incluindo melhoria das condições socioeconômicas e da qualidade de vida da população.
Mas, na prática, o que significam esses dados?
Para entendermos a relação com a saúde pública, precisamos, primeiramente, conhecer como os quatro “pilares” do saneamento básico estão interligados. Podemos dizer que a “cola” que os une é a mesma essencial para a manutenção da vida: a água.
Se você tem o privilégio de fazer parte da fração da população brasileira que tem banheiro e acesso à rede de esgoto, já parou para pensar no que acontece após apertar a descarga?
Dos nossos banheiros, os dejetos seguem, junto com a água que usamos em nossas residências, para sistemas de coleta. Então, passam a compor o esgoto e viajam por longas tubulações até uma estação de tratamento (ETE). Nas ETEs, o esgoto é tratado: dele são removidos, principalmente, matéria orgânica e nutrientes como nitrogênio e fósforo. Depois de tratado, o esgoto pode ser despejado diretamente em corpos hídricos receptores, como rios ou mares.
E por que remover matéria orgânica e nutrientes do esgoto? Os organismos que vivem nos corpos receptores podem utilizar esses compostos e proliferar descontroladamente. Assim, podem ocorrer desequilíbrios ecológicos e fenômenos como a eutrofização, associados à redução da qualidade da água. Também pode ocorrer a multiplicação de microrganismos patogênicos, causadores de doenças.
O despejo irregular de efluentes, industriais ou domésticos, também pode levar à degradação da qualidade da água. Além disso, poluentes presentes no solo e em outras superfícies, como resíduos de agrotóxicos e fertilizantes, podem ser levados até os corpos hídricos pela água da chuva.
Outra potencial fonte de poluição dos corpos hídricos são os resíduos sólidos (o lixo). Se não coletados e dispostos nos locais apropriados, esses resíduos podem poluir solos e a água.
E por que nos preocuparmos com a qualidade da água dos rios, lagos e outros corpos hídricos? Porque é deles que vem a água que abastece nossas moradias e que nos permite realizar nossas atividades cotidianas!
A utilização de água contaminada está associada a riscos à saúde. Aqui, tem papel de destaque as doenças causadas por microrganismos patogênicos transmitidos por meio da água, denominadas doenças de veiculação hídrica. Essas doenças são causadas tanto pela contaminação de águas de abastecimento (ou de alimentos preparados com elas) quanto pelo contato direto com esgotos ou águas contaminadas.
Alguns grupos de patógenos presentes em águas contaminadas são as bactérias (causadoras, entre outras doenças, da cólera, disenteria bacteriana, febre tifóide, leptospirose e diarreia), os protozoários (associados à amebíase, giardíase, criptosporidíase) e os vírus (por exemplo, da hepatite A e o rotavírus).
As doenças associadas à falta de saneamento básico levam cerca de 827 mil pessoas à morte todos os anos em países com renda per capita baixa e média, segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde. Só no nosso país, segundo o relatório do Instituto Trata Brasil, em média, 7 brasileiros morreram por dia em decorrência de doenças de veiculação hídrica em 2019.
Também no Brasil, em 2019, foram registradas pouco mais de 273 mil internações por doenças de veiculação hídrica. Os gastos com essas hospitalizações, evitáveis por meio da ampliação do acesso ao saneamento básico, foram de 108 milhões de reais.
Lembra-se daquela informação sobre a ligação entre saneamento e saúde pública? Quando uma população tem acesso ao saneamento básico, há menor procura dos serviços de saúde em função de doenças de veiculação hídrica, e menos recursos humanos, estruturais e financeiros precisam ser destinados para atendimento dos casos relacionados.
O tamanho do desafio
Apesar da importância para a saúde pública, muito ainda deve ser realizado para garantir o amplo acesso da população brasileira ao saneamento.
No Brasil, a meta estabelecida pela Lei n° 14.026/2020 é assegurar o acesso à água potável para 99% da população até 2033. Em 2020, de acordo com dados do Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS), 84,1% da população brasileira era atendida com rede de água. Resta, portanto, garantir água potável para mais de 36 milhões de brasileiros.
Também em 2020, apenas 55% da população tinha acesso à rede de coleta de esgotos. No mesmo ano, em relação ao volume total produzido, somente metade do esgoto recebeu tratamento. Logo, até 2033, há um longo caminho a percorrer para que possamos alcançar o objetivo de atender 90% da população brasileira com sistemas de esgotamento sanitário.
Quanto aos resíduos sólidos, outro “pilar” do saneamento básico, em 2019, 92% do lixo gerado no Brasil foi coletado e 90,5% da população teve acesso aos serviços de coleta.
Porém, quando avaliamos a destinação do lixo, o cenário não é tão animador: no mesmo ano, 40,5% da massa total do lixo coletado foi disposta em locais inadequados, segundo panorama da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE). Em 2019, mais de 29 milhões de toneladas de resíduos sólidos foram enviadas, inadequadamente, para lixões ou aterros controlados. Essa quantidade seria suficiente para encher, por ano, mais de 50.000 piscinas olímpicas com lixo. No país, a destinação apropriada são os aterros sanitários, construídos para minimizar os riscos associados ao manejo dos resíduos sólidos. A meta é erradicar completamente lixões e aterros controlados até 2024.
Como a Biotecnologia pode contribuir para o saneamento?
Felizmente, a Biotecnologia pode contribuir para a ampliação dos serviços de saneamento básico. Conheça algumas soluções e áreas de estudo que relacionam Biotecnologia e saneamento:
- Tratamento biológico de esgotos e águas residuárias
Uma aplicação direta da Biotecnologia é o tratamento de esgoto e outras águas residuárias. Neste contexto, os processos biológicos, realizados por conjuntos de microrganismos, são alternativas baratas comparadas a alguns tipos de tratamento, como os físicos ou químicos.
Além disso, os processos biológicos podem ser “desenhados” para atingir certa finalidade, como a remoção de um poluente específico. Por exemplo, por meio de estratégias de bioaumento ou bioestimulação, é possível, respectivamente, aumentar o número de microrganismos especializados ou estimular os microrganismos mais aptos à degradação de certo tipo de poluente em sistemas de tratamento de águas residuárias.
Uma possibilidade para ampliar os serviços de saneamento é enxergar o tratamento do esgoto e outras águas residuárias não apenas como custo, mas como fonte de receita.
Por exemplo, o tratamento biológico anaeróbio, isto é, realizado na ausência de oxigênio, resulta na produção de biogás, que pode ser aproveitado como fonte de energia elétrica ou térmica, ou ainda como biocombustível.
De acordo com levantamento da Associação Brasileira do Biogás, a partir do volume de esgoto tratado atualmente no Brasil, seria possível produzir biogás suficiente para gerar o equivalente a 1,18 milhões de MWh em um ano, o que poderia suprir a demanda elétrica anual de uma cidade com 587 mil residências.
Também é possível recuperar recursos a partir do tratamento do esgoto. Por exemplo, os resíduos sólidos do tratamento de esgoto, particularmente a biomassa excedente (chamada lodo), podem ser utilizados como biofertilizantes.
- Monitoramento epidemiológico
Diante de um surto de doenças, é fundamental agir o mais rapidamente possível para que se possa controlar ou minimizar os impactos sobre a saúde da população.
Nesse sentido, há técnicas moleculares que podem ser utilizadas para a identificação rápida de potenciais surtos de doenças de veiculação hídrica. Exemplos são a PCR e análises metagenômicas de amostras ambientais. Essas ferramentas permitem detectar genes marcadores associados a patógenos presentes em amostras de água ou esgoto em questão de horas. Em contrapartida, as técnicas convencionais, como as dependentes do cultivo dos microrganismos da amostra, podem levar vários dias até a obtenção de resultado.
Uma área de estudo relacionada, e em desenvolvimento, é a epidemiologia baseada na análise de águas residuárias. Por meio dela, águas residuárias podem ser utilizadas como fonte de informação sobre a saúde ou estilo de vida de uma população. Durante a pandemia da COVID-19, por exemplo, o esgoto tem sido utilizado como matriz para avaliação da tendência do número de casos e até mesmo para embasamento de estratégias de prevenção e controle do avanço da doença.
- Aproveitamento do lixo
No Brasil, mais da metade do lixo produzido é orgânico. Essa fração orgânica, por sua vez, apresenta potencial para o reaproveitamento. Por meio de processos biológicos como a compostagem e a biodigestão, é possível produzir a partir da matéria orgânica do lixo, respectivamente, adubo e biogás.
Além disso, quando disposto adequadamente em aterros sanitários, o lixo sofre decomposição microbiana anaeróbia, na ausência de oxigênio. Um dos produtos desse processo é o biogás, que pode ser coletado e aproveitado para geração de energia.
Esses são apenas alguns exemplos de como a Biotecnologia pode ser aplicada ao saneamento. Essas e outras soluções biotecnológicas podem tornar viável (e até mesmo rentável!) a ampliação dos serviços e infraestruturas associadas ao saneamento básico. A universalização do acesso ao saneamento, por sua vez, pode contribuir não só para o bem-estar individual e coletivo, mas também para o desenvolvimento econômico do país.
Cite este artigo:
LATOCHESKI, E. C. Saneamento e saúde pública: contribuições da Biotecnologia. Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/saneamento-e-saude-publica-contribuicoes-da-biotecnologia/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências
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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO BIOGÁS (ABIOGÁS). Potencial de produção de biogás a partir do tratamento do esgoto: perspectivas para a universalização sustentável dos serviços de esgotamento sanitário no Brasil. São Paulo: ABiogás, 2021, 33 p.
INSTITUTO TRATA BRASIL. Benefícios econômicos e sociais da expansão do saneamento no Brasil. 2018. Disponível em: <http://www.tratabrasil.org.br/images/estudos/itb/beneficios/sumario_executivo.pdf?fbclid=IwAR0gIQPLAPFMNDNG6ogzzwi71Y4oaqCoKHoqq_xRUtGQz-8_hbE8R2PnVus>. Acesso em: 07 jan. 2022.
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