Um estudo chinês, pré-publicado em junho de 2021, apresentou um surpreendente resultado: ratos machos podem engravidar. Essa notícia trouxe muita atenção ao estudo, levantando diversas questões éticas, já que muitos pesquisadores consideram o experimento desnecessário e cruel.
No referido estudo, os pesquisadores chineses castraram um rato macho, implantaram um útero no animal e uniram cirurgicamente sua circulação à de uma rata fêmea, posteriormente transferindo embriões para o útero de cada animal. Os autores descobriram que o macho poderia de fato engravidar, e em 4% dos casos, os filhotes carregados por ratos machos e entregues por cesariana sobreviveram.
Segundo os autores, a proposta deste modelo é servir como uma forma útil de estudar a biologia reprodutiva, incluindo a identificação de fatores-chave no sangue que podem ajudar a manter a gravidez. A imagem abaixo apresenta uma ilustração dos procedimentos realizados nos animais.
No entanto, diversos pesquisadores questionam o aproveitamento de dados do estudo, visto que foi desenvolvido em condições altamente artificiais e de baixa reprodutibilidade. Além de serem ensaios desnecessariamente cruéis para os animais.
Outro ponto refere-se a baixa taxa de sucesso (4%), indicando que o objetivo está muito longe de ser alcançado. De fato, os autores receberam tantas críticas tanto da comunidade científica, quanto do público em geral que foi solicitada a retirada do estudo do servidor de pré-impressão (servidor que armazena artigos ainda não revisados por pares).
Segundo Qiu Renzong, bioeticista da Academia Chinesa de Ciências Sociais em Pequim, “o experimento não tem valor social e apenas desperdiçou o dinheiro retirado dos contribuintes”. Outros pesquisadores questionam também a relevância do estudo. Em resposta, um dos autores, Zhang Rongjia, disse que o trabalho foi realizado “para nossos interesses e curiosidade pessoais”, e que fizeram esforços para reduzir o número de animais usados e para minimizar sua dor.
A pesquisa científica no mundo dos “click baits”
Os resultados, mesmo que baixos, ainda são surpreendentes e instigantes. Afinal quem não iria ter curiosidade em ler sobre machos grávidos? O que levanta outra preocupação: a ciência como meio da publicidade.
Há uma tendência de “ciência por meio de RP (Relações Públicas)” – a proposta de que experimentos com objetivos bizarros são um atalho para a atenção do público – o que transformaria a ciência em uma forma de negócio de entretenimento, sem nenhuma validade científica. Trazendo para o contexto de mídias digitais, nada mais é do que se utilizar de “click baits” ( estratégia para gerar tráfego online por meio de conteúdos sensacionalistas e muitas vezes enganosos) em pesquisa científica, o que desvaloriza a ciência, além de ser extremamente irresponsável.
Uma coisa é certa: os autores conseguiram a atenção do público, o que leva a uma grande preocupação: os fins justificam os meios na ciência?
É claro que todo cientista deseja reconhecimento por seu trabalho, mas não podemos nos esquecer dos aspectos éticos envolvidos na criação da pesquisa. Os pesquisadores têm responsabilidade com a sociedade e, por tal, respondem a questões políticas, econômicas, ideológicas, étnicas e sociais. Desta forma, é necessário o equilíbrio entre a investigação científica e o respeito aos valores da vida, meio ambiente e da dignidade humana e animal.
A bioética no Brasil: importância do CONCEA
No Brasil, os estudos com experimentação animal devem sempre estar de acordo com as normas vigentes do CONCEA (Conselho Nacional de Controle da Experimentação Animal), órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações. As informações necessárias estão disponíveis no portal Concea (mctic.gov.br).
O pesquisador responsável deverá encaminhar sua proposta ao CONCEA, e só poderá iniciar a pesquisa ou atividade educacional envolvendo animais após a avaliação do comitê, apresentada em parecer. É dever primordial da CONCEA a defesa do bem-estar dos animais em sua integridade, dignidade e vulnerabilidade, assim como zelar pelo desenvolvimento da pesquisa e do ensino segundo elevado padrão ético e acadêmico. Leia também o nosso texto sobre Ética na experimentação animal: porque ainda usados animais em pesquisas científicas?.
Não somente, o Brasil também é signatário da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos que, dentre outros, garante a condução experimental de acordo com as normas éticas respeitando o meio ambiente, a saúde humana e animal.
Sabemos que os modelos de experimentação animal ainda constituem uma importante ferramenta na pesquisa científica. No entanto, já podemos ver diversas iniciativas que almejam minimizar o uso dessa prática. No que se refere a práticas que exijam testes em animais (como, por exemplo, para aprovação das vacinas que exigem testes in vivo), é imprescindível que essa prática esteja baseada em princípios bioéticos, de forma a impor limites de dor e sofrimento, bem como para fiscalizar instalações e procedimentos. Cada país tem seu órgão regulador na área, e antes de qualquer pesquisa é necessário submeter seu estudo para aprovação.
Por fim, agora que já abordamos bem os conceitos de ética em pesquisa científica, fica clara a necessidade de alertar as grandes problemáticas do estudo chinês. A pesquisa científica surge, muitas vezes, de uma curiosidade do pesquisador, mas esta não deve ser sua única função. Sobretudo, se esta acarreta um sofrimento desnecessário ao modelo animal escolhido para a pesquisa.
Cite este artigo: LEAL, G, C. E se ratos machos pudessem engravidar e quais os limites da experimentação animal? Revista Blog do Profissão Biotec, v.8, 2021. Disponível:<https://profissaobiotec.com.br/se-ratos-machos-pudessem-engravidar-quais-os-limites-da-experimentacao/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências:
DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. Brasiliense, 2017.
ENGELHARDT, H. Tristram et al. The foundations of bioethics. Oxford University Press, 1996.
ZHANG, Rongjia; LIU, Yuhuan. A rat model of male pregnancy. bioRxiv, 2021.
Fonte da imagem destacada: Pixabay.