Você já refletiu sobre o polêmico uso de animais na ciência? Neste texto apresentaremos métodos alternativos capazes de reduzir e até substituir essa prática!

Você é contra ou conhece alguém que seja contra o uso de animais em experimentos científicos? Então pode se animar, pois apresentaremos métodos alternativos capazes de reduzir a utilização dos animais ou até mesmo substituí-los na experimentação científica!

Para sempre contra o teste em animais, em tradução livre.
Fonte: Cruelty Free International

Por que os animais chegaram a ser utilizados para testes?

O uso de animais na ciência gera polêmica pelas questões éticas que o envolvem. Ressaltamos que grandes avanços científicos na área da saúde só foram possíveis graças à utilização de animais como modelos para estudos. O uso destes animais salvou, e ainda salva, muitas vidas humanas, porém esta prática, que traz cura, prevenção e tratamento para doenças, também pode gerar dor e estresse nos animais, trazendo conflitos complexos, principalmente naqueles que defendem a causa animal.

Os animais de laboratório também estão envolvidos em testes para garantir a segurança de produtos de composição química como medicamentos, cosméticos, agroquímicos, entre outros. Estes testes são requeridos por órgãos regulatórios, como a Anvisa no Brasil, para que os produtos possam ser registrados e comercializados.

Episódios trágicos ocorreram quando tais testes não eram exigidos ou não tinham regulamentação rigorosa. Dois exemplos famosos são os casos da máscara de cílios Lash Lure, que não foi testada quanto à segurança ocular e levou a casos de cegueira e até uma morte após a utilização do produto, e da talidomida, que foi comercializada sem a realização de todos os testes pré-clínicos adequados e, após ser consumida por mulheres grávidas, gerou problemas severos nos bebês, como falta ou encurtamento de membros.

À esquerda, propaganda da máscara de cílios indicando a versão dos resultados prometidos pela marca Lash Lure após o uso do produto. À direita, foto de um dos casos de dano ocular, indicando qual o efeito real observado após o uso do produto. Fonte: American Academy of Ophtalmology

Os testes em animais garantem a segurança dos produtos quanto à toxicidade aguda, toxicidade ocular, toxicidade cutânea, sensibilização cutânea, fototoxicidade, toxicidade reprodutiva,  entre outros desfechos, e são realizados seguindo protocolos padronizados em muitos países (guias OCDE) e obedecendo à legislação, como a Lei Arouca no Brasil, que regulamenta o uso científico de animais e visa promover seu bem-estar.

No entanto, muitos desses testes ainda são questionados eticamente por submeter os animais a efeitos adversos, mesmo tentando aliviá-los ao máximo, com o uso de anestésicos, analgésicos e antiinflamatórios. Exemplos dos testes questionados são aqueles para a avaliação do potencial de irritação e corrosão de produtos na pele e nos olhos de coelhos, conhecidos como testes de Draize, e os testes de avaliação de sensibilização cutânea em porquinhos-da-índia e camundongos.


Teste de Draize. Fonte: Siqui Sanchez/Getty Images

Além disso, embora os modelos animais ainda sejam essenciais nos estudos de novas terapias, eles têm um poder de predição limitado, pois a distância filogenética entre animais de laboratório e humanos é grande. A agência federal americana Food and Drug Administration (FDA) estima que 92% dos medicamentos aprovados em testes com animais falham quando a pesquisa é transferida para o modelo humano, indicando que nem todos os medicamentos que funcionam em animais terão o mesmo efeito nas pessoas.

Princípio dos 3Rs

No fim da década de 50, preocupados com a ética na experimentação animal, os pesquisadores William Russel e Rex Burch publicaram um livro que descreve o “Príncipio dos 3Rs”, relacionado ao uso de animais na ciência. Tais princípios são seguidos mundialmente como um compromisso das instituições que fazem o uso de animais.

O primeiro R, de Redução, estabelece que o número de animais utilizados por experimento para obter um resultado científico robusto deve ser sempre o menor possível. O segundo R, de Refinamento, descreve que quando o uso dos animais é necessário, este deve ser feito de forma a aliviar ou minimizar a dor, o sofrimento e o estresse desses animais, sempre prezando pelo seu bem-estar. E o último R, do inglês Replacement que quer dizer Substituição, fala sobre a necessidade da utilização de métodos que não usem animais para alcançar os mesmos resultados, sempre que estes métodos, conhecidos como métodos alternativos, estiverem disponíveis.

Com base no Princípio dos 3Rs, diversos métodos alternativos para avaliar a segurança e a eficácia de produtos vêm sendo desenvolvidos e validados também para fins de registro e comercialização, garantindo que produtos cheguem ao mercado de forma segura, sem a necessidade de testes em animais.

Métodos alternativos ao uso de animais

São considerados métodos alternativos aqueles que têm a capacidade de reduzir, refinar ou substituir o uso de animais em testes científicos. Dentre estes métodos, estão:

  • Informações pré-existentes na literatura científica: dados de testes in vitro, experimentação animal ou até ocorrências em humanos obtidos no passado podem ser encontrados na literatura científica, eliminando a necessidade de repetição de alguns experimentos. Dados de propriedades físico-químicas de várias substâncias, como o seu pH e grupos estruturais específicos, também podem servir como indícios de toxicidade e evitar testes desnecessários em animais.
  • Métodos alternativos in silico: a utilização de modelos matemáticos ou computacionais de softwares pode predizer o potencial risco oferecido por novas substâncias, com base na semelhança de propriedades físico-químicas com outras substâncias já existentes e em outras  informações extraídas de bancos de dados.
  • Métodos alternativos in vitro: são métodos que utilizam o cultivo de células, tecidos e órgãos fora do organismo, em laboratório, visando obter a mesma informação que seria obtida com o modelo animal. Muitos destes métodos já são validados e aceitos por órgãos regulatórios como metodologias para avaliação de segurança de produtos.
  • Sistemas microfisiológicos: conhecida pelas nomenclaturas organ-on-a-chip, multi-organ-chip e human-on-a-chip, esta tecnologia robusta promete maior poder preditivo e combina o cultivo de células em três dimensões, os chamados organóides, em dispositivos microfluídicos, na tentativa de mimetizar o organismo de forma fisiológica e assim substituir, ou ao menos reduzir, o uso do modelo animal. Diversos modelos de dispositivos diferentes são comercializados e sua validação regulatória para avaliação de segurança e eficácia de produtos é um grande objetivo mundo afora.

Vantagens dos métodos alternativos

Os métodos alternativos in vitro, atualmente mais acessíveis e em fase de disseminação, têm grande potencial para reduzir e até mesmo substituir o uso de animais. Estes métodos são, em muitos casos, mais rápidos e baratos, além de terem condições experimentais altamente controladas e resultados quantificáveis, diferente de alguns testes em animais que geram resultados subjetivos e demandam mais tempo e gastos.

Outra vantagem é a possibilidade de utilização de células humanas (linhagens comerciais usadas para pesquisa e compradas de bancos de células), eliminando o problema da distância filogenética entre animais e humanos e levando a uma maior taxa de sucesso na transição dos testes pré-clínicos para os clínicos.  

Limitações dos métodos alternativos

Apesar de suas vantagens, nenhum método alternativo sozinho é capaz de substituir o uso de animais, pois cada um dos métodos reproduz apenas parcialmente a complexa resposta fisiológica que ocorre em um organismo vivo (in vivo). Por exemplo, testes de irritação ocular que utilizam células epiteliais da córnea indicam o potencial de lesão de uma substância apenas na córnea e sabemos que outras estruturas oculares, como íris e conjuntiva, também são importantes no processo de irritação ocular. Uma combinação estratégica de diversos métodos alternativos em uma abordagem integrada tem maiores chances de levar à completa substituição.

O teste de Draize nos olhos de coelhos para avaliar o potencial de irritação/corrosão ocular pode ser substituído, por exemplo, por uma combinação de dois métodos alternativos que utilizam células de epitélio de córnea de coelho, provenientes de uma linhagem celular comercial, e epitélio de córnea tridimensional humano reconstruído em laboratório. Este conjunto de dados obtidos em testes integrados deve oferecer resultados com mesmo nível de informação científica em relação aos obtidos, anteriormente, com os modelos animais.  

Para testes de segurança de cosméticos e agroquímicos, por exemplo, já é possível substituir o uso de animais. No entanto, quando o assunto são os medicamentos, a indústria farmacêutica ainda precisa testá-los em animais, para simular as reações complexas que podem ocorrer no organismo após o uso destas substâncias, já que as avaliações para testes de medicamentos em humanos são muito mais rigorosas. Neste caso, os métodos alternativos podem ser utilizados antes da experimentação animal como um filtro para encontrar compostos que sejam realmente promissores, a fim de reduzir testes desnecessários em animais.

Métodos alternativos no mundo e no Brasil

Na Europa, testes para avaliação de segurança de cosméticos em animais já são proibidos. Outros países, como Israel e Índia, também proíbem esta prática. Infelizmente, grandes potências como a China ainda exigem testes em animais para a comercialização de produtos cosméticos.

Produtos não testados em animais são certificados com logos “cruelty-free”.

Combatendo os testes em animais, em tradução livre.
Fonte: Lush – Still fighting against animal testing

Símbolos confiáveis que indicam ausência de testes em animais. Fonte: Cruelty-free resource.

O Brasil vem aumentando as iniciativas para substituir o uso de animais. Algumas indústrias cosméticas brasileiras, como Natura e Grupo Boticário, já não testam seus produtos em animais há anos. Em 2012, o governo demonstrou comprometimento com o tema criando a Rede Nacional de Métodos Alternativos (RENAMA) e aportando recursos a pesquisadores para estimular o desenvolvimento, a validação e a disseminação de métodos alternativos no país.

Em 2014 e 2016, duas  resoluções normativas publicadas pelo Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) reconheceram 24 métodos alternativos a serem obrigatoriamente implementados no país em até 5 anos após a data de publicação, o que significa que a maioria desses métodos serão obrigatórios a partir de setembro de 2019. O uso de animais no país estará proibido quando houver um método alternativo reconhecido para avaliar os seguintes desfechos: potencial de irritação/corrosão da pele, potencial de irritação/corrosão ocular, potencial de fototoxicidade, absorção cutânea, potencial de sensibilização cutânea, toxicidade aguda, genotoxicidade, toxicidade reprodutiva e contaminação pirogênica de produtos injetáveis.

A RENAMA, em parceria com países do Mercosul, promoveu cursos teórico-práticos ministrados nos últimos anos por laboratórios especialistas nestes métodos com o objetivo de treinar e capacitar pesquisadores e empresas para realizá-los.

Estes esforços estão trazendo reconhecimento ao país nesta área e fomentando nosso potencial inovador. Pesquisadores brasileiros já foram internacionalmente reconhecidos por seus projetos envolvendo o desenvolvimento e a disseminação de métodos alternativos ao uso de animais. Em 2018, um grupo da Universidade Federal de Goiás, na categoria treinamento, e uma pesquisadora brasileira, na categoria jovem pesquisador, foram premiados com o “oscar dos métodos alternativos”, o Lush Prize. A edição anterior do prêmio também teve dois brasileiros premiados.

Outros projetos interessantes estão em desenvolvimento no Brasil, como é o caso do projeto “human-on-a-chip” no LNBio em Campinas, e a produção de epiderme 3D humana reconstruída,  pela L’Oreal no Rio de Janeiro.

Métodos alternativos com maior poder preditivo e validados para avaliar a segurança ou eficácia de substâncias e produtos darão a base para uma experimentação racional, em que o uso de animais e seu sofrimento são minimizados, sem comprometer a qualidade do trabalho científico. Esta é uma nova e importante área de atuação para biotecnologistas, que têm a missão de desenvolver métodos cada vez melhores com o objetivo de chegar à substituição total do uso de animais de laboratório, que com certeza agradecem.

Procurando um resumão desse assunto em vídeo? Acesse nosso vídeo sobre Como funcionam os testes em animais no Brasil.

Tem interesse na área? Fique de olho no novo curso de pós graduação em métodos alternativos da Fiocruz e nos cursos de treinamento da rede PReMASUL!

Texto revisado por Natália Videira e Thaís Semprebom
Referências:
National Research Council, Research I of MC on the U of LA in B and B. Use of Laboratory Animals in Biomedical and Behavioral Research. Washington: National Academies Press (US); 1988.
Zurlo J, Rudacille D, Goldberg AM. Animals and Alternatives in Testing: History, Science, and Ethics. Mary Ann Liebert, Inc.; 1994.
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Russel WMS, Burch RL. The principles of humane experimental technique. London: Methuen; 1959.
National Centre for the Replacement Refinement and Reduction of Animals in Research (NC3Rs). The 3Rs 2018. https://www.nc3rs.org.uk/the-3rs#The 3Rs definitions.
Presgrave OAF. Alternativas para animais de laboratório: do animal ao computador. FIOCRUZ; 2002.
Marin TM, Pagani E. Sistemas microfisiológicos compostos por organoides humanos em dispositivos microfluídicos: avanços e desafios. Visa Em Debate 2018;6. doi:http://dx.doi.org/10.22239/2317-269x.01053.

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