Você já leu o livro “Admirável Mundo Novo”? No romance de Aldous Huxley, somos apresentados a uma civilização hipotética cujos alicerces são a hierarquia, o consumismo e, especialmente, a felicidade. Para manter tal ordem social, os personagens são condicionados desde o início da vida por meio de diferentes técnicas; e, caso haja alguma insatisfação, existe o “Soma”, uma substância alucinógena indutora de felicidade, capaz de suprimir emoções desagradáveis.
A obra aborda inúmeros tópicos sobre política e estrutura social, e foi indicada em 2019, pela BBC, como um dos 100 livros que moldaram o mundo. Entre as perguntas e curiosidades que a leitura traz, uma das mais interessantes é: será que existe algum medicamento atual similar ao Soma?
O que é a depressão?
Pela maneira que o autor descreve o Soma em Admirável Mundo Novo, podemos assumir que a substância futurística apresenta efeitos similares aos antidepressivos atuais. Mas, antes de abordar os medicamentos, devemos falar primeiro sobre o que eles pretendem tratar: a depressão.
A palavra “depressão” costuma ser utilizada cotidianamente com diferentes significados, como tristeza e estados de humor negativo, porém também é utilizada como diagnóstico na prática clínica. Nesse caso, trata-se de um distúrbio psiquiátrico afetivo (ou distúrbio de humor) caracterizado por alterações emocionais e biológicas. Entre os sintomas, podemos citar: tristeza profunda, apatia, anedonia (interesse reduzido), perda de motivação, perda ou excesso de apetite e distúrbios de sono, que devem perdurar por, no mínimo, duas semanas.
Diferentes condições estão envolvidas no desenvolvimento de distúrbios depressivos, como fatores biológicos, psicológicos e sociais. Vale notar que os sintomas são variáveis entre os pacientes e o diagnóstico deve ser feito por profissionais, como psiquiatras.
Os sintomas depressivos são observados há muitos séculos, sendo que um dos primeiros relatos foi feito por Hipócrates (460 ac. – 377 a.C.), considerado o “pai” da Medicina. Nessa época, o distúrbio era considerado um desequilíbrio dos “humores”, teoria principal disponível naquele tempo para explicar o funcionamento do corpo humano a partir de quatro fluidos: fleuma, sangue, bile negra e bile amarela. Caso o indivíduo apresentasse um excesso de “bile negra”, dizia-se que ele sofria de melancolia.
Se um susto ou desânimo durar por um longo tempo, é melancolia. -Aforismos, de Hipócrates
Não é surpresa que, com o entendimento limitado acerca da natureza do transtorno, os métodos de tratamento do passado eram pouco eficientes. Como exemplo, há registros de sangria e indução de vômito para “rebalancear os humores” na busca pelo tratamento, além das interpretações de origens sobrenaturais acerca da depressão. No entanto, conforme os conhecimentos da ciência e da medicina avançavam, ocorreram mudanças de paradigma tanto a respeito da natureza do transtorno quanto dos tratamentos viáveis para ela.
O que causa a depressão?
Atualmente, sabe-se que a depressão é multifatorial, e entre esses fatores estão: aspectos genéticos, desbalanceamento na bioquímica cerebral, doenças como hipotireoidismo, estresses ambientais, traumas e uso de certos medicamentos ou substâncias. As teorias biológicas que explicam os sintomas físicos evoluíram bastante nas últimas décadas, e tal melhora promove o avanço nos tratamentos e nas intervenções farmacológicas.
Algumas evidências clínicas apontam que uma das causas da depressão pode estar relacionada a alterações na bioquímica do sistema nervoso central dos pacientes. Nosso cérebro possui diversos neurotransmissores, moléculas secretadas por neurônios que sinalizam diferentes tipos de informação, e um desbalanço nesse sistema poderia ocasionar os sintomas depressivos. Neste contexto, as monoaminas (serotonina, norepinefrina e dopamina) são especialmente estudadas pelas suas funções regulatórias de diversas atividades cerebrais e, quando alteradas, podem ocasionar alterações de humor em longo prazo.
Além disso, a neurobiologia da depressão pode ser relacionada com alterações na concentração do fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF, do inglês brain-derived neurotrophic factor), molécula importante para a sobrevivência e plasticidade neural, assim como mudanças na concentração de moléculas inflamatórias no sistema nervoso. Ainda não existe uma causa única e consensual na comunidade científica acerca dos mecanismos por trás da depressão, e a biotecnologia auxilia na busca pelo entendimento das causas que podem ocasionar esse transtorno.
Quais tratamentos já existem?
O entendimento de algumas origens neurobiológicas proporcionou a criação de medicamentos que atuam nas vias cerebrais, melhorando a sintomatologia dos casos depressivos. A intervenção farmacológica feita pela psiquiatria visa aumentar o número disponível de neurotransmissores no cérebro, seja por inibir sua recaptura ou impedir sua degradação, cenários que inviabilizam a atuação dessas moléculas.
Já existem vários tipos de antidepressivos disponíveis no mercado, com indicações diferentes para cada caso clínico e para cada paciente. Um exemplo são os antidepressivos tricíclicos (TCA, sigla em inglês), que são medicamentos inibidores de recaptação não seletiva de serotonina e noradrenalina. Também podemos citar os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (SSRI, sigla em inglês), uma classe mais moderna e mais eficiente de medicamentos. Devido à seletividade dos SSRI, os pacientes sujeitos a esse tratamento apresentam menos efeitos adversos que os tratados com TCA.
Além dos medicamentos, a terapia é parte significativa no processo de tratamento da depressão. Já foi observado que diferentes tipos de intervenções psicoterapêuticas contribuem para a melhora dos quadros depressivos; um exemplo é a terapia cognitivo-comportamental, que visa reestruturar crenças disfuncionais dos pacientes. Felizmente, estudos clínicos indicam que a combinação da terapia com a prescrição de medicamentos aumenta consideravelmente a chance de um resultado positivo no tratamento da depressão.
O que a biotecnologia tem a ver com isso?
A biotecnologia possui diversas áreas de atuação, que são classificadas pors cores. A biotec vermelha estuda, especificamente, temas relacionados à saúde, como a produção de vacinas e de antibióticos. Nessa área, os conhecimentos fisiológicos de uma patologia podem guiar o desenvolvimento de novos medicamentos seletivos cuja produção, via técnicas biotecnológicas, é aprimorada e facilitada. A engenharia genética e a tecnologia do DNA recombinante, por exemplo, possibilitam a fabricação sustentável e com bom custo-benefício dos compostos ativos de antidepressivos.
Além do mais, metodologias recentes também facilitam a criação de medicamentos não SSRI, como os inibidores de recaptação de norepinefrina e dopamina, e a identificação de outros possíveis causadores de distúrbios depressivos, por exemplo alterações na microbiota intestinal. Os biofármacos também são ótimos exemplos de atuação da biotecnologia para a fabricação de anticorpos, enzimas e outras biomoléculas. A farmacologia, no futuro, promete a existência de terapias eficientes personalizadas ao paciente, baseadas em genes: a farmacogenômica.
O que esperar do futuro?
A ciência e a medicina já obtiveram muito progresso no entendimento sobre a depressão. Tanto a busca pelas origens quanto o aperfeiçoamento dos tratamentos são temas bastante estudados, contudo um único medicamento funcional para todos é uma realidade distante, digna de ficção literária. Apesar disso, os medicamentos disponíveis, em conjunto com acompanhamentos psicológicos, são a melhor estratégia contra um transtorno mental que aflige tantas pessoas no mundo hoje.
De qualquer modo, a desestigmatização de transtornos mentais ainda é uma condição fundamental para a busca por tratamentos mais eficientes e que melhorem a qualidade de vida dos pacientes. Se você sente necessidade, busque ajuda profissional! Há diversos psicólogos e psiquiatras que podem te auxiliar a cuidar da sua saúde mental. É muito bom, e você vale a pena!
Cite este artigo:
FRANCA, L. V. Um pouco sobre depressão, ciência e biotecnologia. Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/um-pouco-sobre-depressao-ciencia-biotecnologia/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências
Cuijpers, P; et al. Psychological Treatment of Depression in Primary Care: Recent Developments. Curr Psychiatry Rep. 21(12):129, 2019. Disponível em: doi:10.1007/s11920-019-1117-x.
Greenberg, J; Tesfazion, AA; Robinson, CS. Screening, diagnosis, and treatment of depression. Mil Med. 177(8 Suppl):60-66, 2012. Disponível em: doi:10.7205/milmed-d-12-00102.
Koopman, M; et al. Depressed gut? The microbiota-diet-inflammation trialogue in depression. Curr Opin Psychiatry. 30(5):369-377, 2017. Disponível em: doi:10.1097/YCO.0000000000000350.
Maffei, ME. 5-Hydroxytryptophan (5-HTP): Natural Occurrence, Analysis, Biosynthesis, Biotechnology, Physiology and Toxicology. Int J Mol Sci. 22(1):181, 2020. Disponível em: doi:10.3390/ijms22010181.
Peng, GJ; et al. Research on the Pathological Mechanism and Drug Treatment Mechanism of Depression. Curr Neuropharmacol. 13(4):514-523, 2015. Disponível em: doi:10.2174/1570159×1304150831120428.
RANG, R., et al. Rang & Dale Farmacologia. 8ª edição. Elsevier Brasil, 2015.
Varella Bruna, MH. Depressão. Drauzio Varella. Disponível em: <https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/depressao>. Acesso em: 03 Mai 2022.
Fonte da imagem destacada: Foto por K. Mitch Hodge no Unsplash.