Desafios e potencialidades da biotecnologia no Brasil: pela valorização da indústria nacional de insumos e equipamentos laboratoriais.

A aplicação de técnicas biotecnológicas vem transformando diversas indústrias desde a agricultura até a saúde, mas apesar das promessas, o desenvolvimento, aplicação e difusão dessas técnicas, seja nos laboratórios de pesquisa, seja na produção industrial, não é tarefa simples.

Existem muitos empecilhos para o desenvolvimento da ciência de uma maneira geral, mas desafios específicos impactam as áreas de alta densidade tecnológica, como é o caso da biotecnologia. A aplicação de técnicas biotecnológicas vem transformando diversas indústrias desde a agricultura até a saúde, mas apesar das promessas, o desenvolvimento, aplicação e difusão dessas técnicas, seja nos laboratórios de pesquisa, seja na produção industrial, não é tarefa simples.

Especificamente olhando para os laboratórios de pesquisa acadêmicos, que no Brasil, são basicamente financiados principalmente pelo poder público, os desafios para o desenvolvimento da ‘ciência de bancada’ podem ser divididos em 3 categorias: 

  1. infraestrutura e investimentos; 
  2. regulamentações e incentivos; 
  3. rotinas e cultura. 

Alguns desses desafios podem ser mitigados ou até mesmo resolvidos com a digitalização e automação dos processos, enquanto outros dependem da evolução do próprio sistema de inovação.

Cientistas altamente capacitados, em um habitat pouco favorável.

Laboratórios de bancada, ou seja, aqueles que utilizam soluções e equipamentos especializados, e manipulam seres vivos como camundongos, plantas e microorganismos, necessitam de uma infraestrutura adequada, com espaços preparados para lidar com microorganismos e técnicas delicadas.

Cientista cortando gel de agarose. Fonte: Unsplash.com.

Aqui no Brasil, conseguimos fazer muito com o recurso que temos, mas trabalhamos em condições longe das ideais. As ferramentas e técnicas utilizadas pela biotecnologia e outras ciências de alta tecnologia são muito caras, principalmente devido a dependência de muitos insumos importados. Vale lembrar que incluídos nos custos dos materiais importados estão o valor do próprio insumo, a conversão da moeda geralmente desvantajosa para nós, o custo da importação, o tempo perdido na espera e no preenchimento da papelada envolvida e uma certa porcentagem de perdas devido a esse processo burocrático.

Assim, cientistas brasileiros tiram leite de pedra para fazer ciência, colocando sua criatividade no limite para poder promover a expansão do conhecimento. Infelizmente, fazer ciência de ponta em todas as áreas do conhecimento pode possuir um custo maior do que alguns países podem suportar, se a infraestrutura necessária não acompanhar o fomento à ciência (Schillinger, 2004).

Recursos são escassos, mas má gestão certamente não ajuda.

Além do custo inerente dos insumos e infraestrutura necessários para se fazer pesquisa e desenvolvimento, a maneira como permissões e burocracias são organizadas pode facilitar ou restringir a pesquisa, influenciando no custo total. Uma das grandes reclamações dos cientistas, que persiste até hoje no Brasil, é a demora para importação de material e equipamentos (Rehen, 2004).

Aqui pode existir problema dos dois lados: os técnicos que são responsáveis por liberar esses materiais podem não ter conhecimento ou ferramentas para lidar adequadamente com os diversos materiais e suas peculiaridades. Por outro lado, o aumento de burocracia para melhor padronizar as atividades pode tornar o processo ainda mais complexo, atrasando a ciência, ao invés de facilitar (Peregrino & Sávio, 2019).

Explicar fenômenos pode ser parecido com montar um quebra-cabeça, mas organizar a gestão dos projetos só tende a ajudar com as tarefas mais difíceis. Fonte: Unplash.

Ainda, a falta de uma estrutura logística que consiga importar pequenos volumes sem que aumente muito o custo da importação, muitas vezes acarreta em atraso por parte das empresas fornecedoras, que aguardam um determinado acúmulo de pedidos para trazer os produtos de suas matrizes. Algumas propostas por parte de fundações, startups e das próprias empresas distribuidoras têm surgido no mercado, mas uma solução abrangente ainda está em falta.

Neste caminho desconhecido, incerto e demorado, insumos que necessitam de refrigeração ficam armazenados de maneira inadequada nos departamentos alfandegários, acabando por perder suas características e, portanto, invalidando sua utilização. Assim, recursos como tempo e investimentos, já escassos, são ainda mais desperdiçados.

Uma cultura colaborativa é essencial para mitigar os desafios da ciência.

A ciência e o conhecimento são bens públicos, que servem à sociedade, e devem permanecer em função de todos. Isso faz com que o governo, sob qualquer forma de organização, seja uma peça fundamental no avanço da pesquisa. Sua importância não deve, porém, acobertar a responsabilidade que cada um de nós, principalmente cientistas, têm em relação ao avanço da ciência.

Usando novamente a importação de insumos e equipamentos como exemplo, uma solução para avançar a ciência brasileira seria tornar esse processo de importação o mais simples e rápido possível. Por outro lado, fomentar e enfatizar a produção dentro do território nacional, além de evitar quaisquer custos e processos relativos à importação, gera renda, empregos e conhecimento para o país, aumentando sua competitividade.

Produzir esses insumos e equipamentos exige empreendedorismo por parte daqueles que detém o conhecimento necessário, um ambiente de suporte a essas empresas inovadoras, mas também exige a conscientização do mercado.

Na gestão da inovação existe um conceito chamado de “not-invented-here syndrome” (ou “síndrome do não-inventado-aqui”). O conceito diz respeito à resistência que certas empresas enfrentam por parte dos seus colaboradores internos e equipe de gestão a ideias desenvolvidas fora da empresa, ou seja, toda inovação, para ser boa, tem que vir de dentro da empresa e ali ser desenvolvida até chegar ao mercado.

Seja por resquícios do colonialismo ou ainda por falta de maturidade e conhecimento, essa síndrome adquire um sentido oposto no contexto aqui discutido: temos ainda uma grande resistência em aceitar o que é desenvolvido dentro do país, enquanto aceitamos mais facilmente o que vem de fora. Produtos desenvolvidos no Brasil sofrem um grande preconceito e, mesmo tendo custo e tempo de entrega menores, além das outras vantagens já mencionadas, encontram grande resistência no mercado.

Podemos não estar no mesmo barco, mas estamos no mesmo mar. Fonte: Unsplash.

Existe ainda, é claro, uma série de inseguranças: a qualidade do produto é comparável às grandes marcas? As revistas vão aceitar meus resultados feitos com produtos de marcas desconhecidas? Será possível reproduzir meus experimentos com produtos similares de marcas conhecidas? Vou gastar tempo tendo que revalidar protocolos experimentais?

Já é tempo porém de buscarmos uma cultura mais colaborativa, não somente dentro do laboratório, mas também com as empresas nacionais que buscam criar valor para nossa comunidade.

Valorizar a tecnologia nacional é um caminho para desenvolver a ciência brasileira.

O Brasil ainda conta com um número muito pequeno de empresas de biotecnologia, que se dedicam à pesquisa e desenvolvimento. Os últimos estudos mostraram números entre 200 e 300 empresas, porém sem muita especificidade sobre o que significa biotecnologia, por vezes englobando empresas que apenas utilizam materiais biológicos ou naturais em seu processo de produção (Alves, 2019).

Mesmo em minoria, empresas desenvolvedoras de (bio)tecnologias têm mostrado uma capacidade de produzir produtos de alta qualidade a preços competitivos e prazos de entrega formidáveis. O mercado é dominado por multinacionais, que acabam por terem um enorme poder de barganha e a falta de competição parece gerar falhas: não é incomum pesquisas pararem por falta de produtos dessas empresas no mercado ou por longos prazos de entrega.

Essa questão ficou ainda mais óbvia com a pandemia da COVID-19. Para além da falta de uma coordenação central para aquisição de insumos, entre outras questões políticas, o Brasil estava absolutamente dependente do mercado internacional e isso influenciou nossa capacidade de fazer diagnóstico e também pesquisas sobre a doença.

O lado positivo da pandemia, se é que se pode ter algum, foi que a clara dependência das importações deu força e espaço para empresas brasileiras mostrarem seu potencial, iniciando um movimento de valorização dessas tecnologias.

Esta é ainda uma pequena fagulha, mas espera-se que ela se torne um movimento e que não morra na praia. Ainda temos um longo caminho, inclusive para tornar nossas tecnologias cada vez melhores e mais conhecidas. Podemos, porém, fazer nossa parte: buscar as empresas nacionais, interagir com elas e contribuir para um sistema mais fortalecido. 

Referências:
Alves, Nathalia, Vargas, Marco Antônio, Britto, Jorge (2019). Empresas de biotecnologia em saúde humana no Brasil: um estudo prospectivo. 45o Encontro Nacional de Economia. 
Laland, Kevin (2020). Racism in academia, and why the ‘little things’ matter. Last access on 14.09.2020. https://www.nature.com/articles/d41586-020-02471-6
Nature (2019). The mental health of PhD researchers demands urgent attention. Editorial 575, 257-258. https://doi.org/10.1038/d41586-019-03489-1
Peregrino, Fernando; Raeder, Sávio. (2019) Relatório. O que pensa o pesquisador brasileiro sobre a burocracia? Confies/MCTIC.
Rehen, Stevens (2004). Scientific aid to Brazil is strangled by red tape. Nature 428, 601. https://doi.org/10.1038/428601a.
Schillinger, Eva (2004). High prices of supplies drain cash from poorer nations’ labs. Nature 428, 453. https://doi.org/10.1038/428453a

Sobre Nós

O Profissão Biotec é um coletivo de pessoas com um só propósito: apresentar o profissional de biotecnologia ao mundo. Somos formados por profissionais e estudantes voluntários atuantes nos diferentes ramos da biotecnologia em todos os cantos do Brasil e até mesmo espalhados pelo mundo.

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