A ciência é fundamental na formação de um biotecnologista, mas o trabalho em bancada pode não ser parte do seu DNA. A área de pesquisa clínica pode ser o caminho para quem não se vê trabalhando em laboratório, mas gostaria de ter uma carreira científica na área da saúde.
Esse texto foi dividido em duas partes, e a de hoje abordará uma introdução à pesquisa clínica, uma explicação do fluxo organizacional de condução dos testes e uma perspectiva sobre a atuação do biotec na área. Já a segunda parte vai detalhar os cargos possíveis de serem ocupados por nós! E aí, vamos começar?
Mas espera aí, o que é pesquisa clínica?
Para a comercialização de um medicamento, vacina, tratamento ou dispositivo médico, ou seja, para que seja autorizada a sua venda e distribuição, é necessário que ele passe por várias etapas de comprovação de segurança e eficácia.
A última delas é a etapa de estudos em seres humanos, ou, como é mais conhecida, a pesquisa clínica. Segundo a resolução 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde, “a pesquisa clínica consiste em testes que têm como participantes seres humanos, envolvendo-os de forma direta ou indireta, a partir do manejo de seus dados, informações ou materiais biológicos.”
Os testes clínicos são divididos em 4 fases, sendo que os produtos só avançam para as etapas seguintes caso os objetivos da fase anterior sejam cumpridos. Para saber mais sobre as fases e o que é avaliado em cada uma, que tal ler esse texto do Profissão Biotec?
E quanto custa tudo isso?
Segundo o estudo “Examination of Clinical Trial Costs and Barriers for Drug Development”, o custo médio dos ensaios clínicos de fase 1, 2 e 3 em áreas terapêuticas é de cerca de US$ 4, 13 e 20 milhões, respectivamente. Sendo que, os estudos de fase 3 aprovados e realizados nos EUA custam em média 40 mil dólares por paciente.
E somado aos preços exorbitantes, o tempo médio de 7 anos necessários para a conclusão de um ensaio força as empresas a fazerem altos investimentos para dar celeridade ao processo. Esses investimentos foram intensificados com a pandemia, que em 2020, fez mais de 79% dos ensaios clínicos serem interrompidos.
Por outro lado, a Covid-19 trouxe a criação de um montante imenso de estudos clínicos, nas mais diversas frentes para se combater a doença. Isso criou uma demanda para o profissional de pesquisa clínica, escasso no mercado, e elevou os salários desses profissionais que já eram, em sua maioria, bem generosos.
Ok… Mas como a indústria farmacêutica realiza esses testes?
Bom, para começar, existem outros tipos de indústrias que também precisam realizar testes clínicos para a comercialização de seus produtos. A indústria de dispositivos médicos abrange a fabricação de equipamentos médicos, científicos e cirúrgicos. Já a indústria de biotecnologia, que produz tratamentos a partir de seres vivos, ficou tão especializada que se definiu para além da indústria farmacêutica.
As empresas que desejam comercializar novos tratamentos são chamadas de Patrocinadores. Os Patrocinadores quase sempre optam pela contratação de uma Organização Representativa de Pesquisa Clínica (Contract Research Organization, “CRO”, em inglês), que fica então responsável pela gestão dos estudos clínicos de interesse do Patrocinador.
As CROs contratam Centros de Pesquisa para a captação e seleção dos voluntários de pesquisa, e condução dos protocolos para realização dos testes clínicos. Para serem aptos a conduzirem os estudos, incluindo o acompanhamento e registro de dados dos sujeitos de pesquisa, os Centros de Pesquisas Clínicas são locais liderados por um médico Investigador Principal (Principal Investigator, PI, em inglês), ou um grupo de médicos.
Tá, mas quais são os setores dos Patrocinadores envolvidos no processo?
Cada Patrocinador tem sua estrutura própria, e pode optar por fundir ou criar novos departamentos, mas geralmente a área de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) lida com a maior parte da etapa clínica. É ela quem, por exemplo, gerencia o trabalho da CRO e analisa os dados gerados pelos estudos.
Já o departamento de Assuntos Médicos (Medical Affairs) atua como uma ponte entre as áreas de P&D e Comercial. Antes o ramo de Assuntos Médicos pertencia ao Comercial, mas as agências regulatórias perceberam a necessidade ética de separar produtos ainda em fase de teste daqueles já aprovados.
Assim, muitos novos cargos surgiram com a nova área de Medical Affairs, focando na comunicação de informações precisas aos profissionais de saúde, ou, como são chamados na área, KOL (Key Opinion Leaders). Inclusive, como já deve ter percebido, muitos termos da área são usados em inglês, e alguns não têm tradução direta para o português.
Então, uma dica: o inglês não é diferencial na pesquisa clínica, e sim um pré-requisito! Investir na fluência dessa língua é essencial para o tão esperado sim na entrevista de emprego. E será que o diploma de biotecnologia dá uma forcinha também?
E onde exatamente entra o biotecnologista nessa história?
Se depender do caráter multidisciplinar, o biotecnologista vale por uma equipe inteira. Segundo a definição do querido Profissão Biotec, o biotecnologista é um “profissional altamente multidisciplinar, capacitado para solução de problemas utilizando a natureza como inspiração. […]”
Essa visão estratégica de todo o processo da pesquisa básica, que é a base da pesquisa clínica, é muito valorizada! Uma sólida formação desde o desenho de um experimento, passando pela formação de uma base bibliográfica, até a discussão dos resultados com os pares traz habilidades muito procuradas nesse ramo da indústria.
Devido à complexidade da operação de um estudo clínico, diferentes hierarquias são necessárias, e isso inclui diferentes níveis de conhecimento, mas não necessariamente um salário maior. Isso porque a academia ainda não absorveu as demandas do setor, e os mestres e doutores formados muitas vezes não atendem às especificações da pesquisa clínica.
Assim, MBAs ou cursos de especialização podem ser opções mais antenadas às dinâmicas da área, mas a verdade é que não há uma fórmula pronta. Existem sim cargos que exigem doutorado e remuneram muito bem, mas nada é mais atrativo do que candidatos com experiência. Talvez a parte mais difícil de se trabalhar nessa indústria seja conseguir entrar nela.
A boa notícia é que a maioria dos empregos não exige registro em conselho e o mercado está bem aquecido! Devido à nossa grande população, e a desvalorização da nossa moeda em relação ao dólar, muitas empresas estrangeiras estão entrando no Brasil para realizarem a etapa clínica de suas pesquisas.
Estou quase convencido, só quero um exemplo dessa atuação!
Bom, existem ainda outros cargos e profissões importantíssimos para o bom funcionamento da pesquisa clínica. O Principal Investigator (PI), por exemplo, é o médico responsável pelo Centro de Pesquisa. Ele é quem seleciona os pacientes aos estudos, à partir de consultas médicas, e é também quem realiza as negociações com o Patrocinador.
Geralmente, existem também outros médicos, enfermeiros e nutricionistas responsáveis pelo acompanhamento dos pacientes no estudo. A logística de distribuição e armazenamento dos medicamentos é de responsabilidade do farmacêutico e há ainda um biomédico ou técnico em enfermagem que realiza as coletas das amostras biológicas necessárias à condução do estudo.
Muitas profissões podem atuar em vários cargos, e os players (Centros de Pesquisa, CROs e Patrocinadores) podem ter diversas construções hierárquicas, de modo que o exposto nesse texto deve ser tomado como uma referência, e não uma regra!
A versatilidade do biotecnologista torna esse profissional passível de ser inserido em diferentes posições, assim como a nossa essência curiosa torna possível se apaixonar por outra forma de fazer pesquisa. E se quiser continuar se encantando por esse universo da pesquisa clínica, fique ligado aqui no PB que no próximo texto nos aprofundaremos nos cargos dessa indústria!
Cite este artigo:
CORTÊS, D. A. Biotecnologia e Pesquisa Clínica – Parte I: Uma Introdução ao Setor. Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/biotecnologia-pesquisa-clinica-parte-1-introduc/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências:
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SBPPC – Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica. Quais as fases de uma pesquisa clínica? SBPPC. Disponível em: <https://www.sbppc.org.br/fases-de-uma-pesquisa-clinica>. Acesso em: 11 de fev. de 2022.
SEGAL, T. Biotech vs. Pharmaceuticals: What’s the Difference? Investopedia, 2021. Disponível em: <https://www.investopedia.com/ask/answers/033115/what-difference-between-biotechnology-company-and-pharmaceutical-company.asp>. Acesso em: 10 de fev. de 2022.
SMITH, PCJ. The Role of Medical Affairs in Moving from R&D to Commercialization. BioProcess International, 2013. Disponível em: <https://bioprocessintl.com/analytical/qa-qc/the-role-of-medical-affairs-in-moving-from-randd-to-commercialization-341871/>. Acesso em: 10 de fev. de 2022.
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