A análise dos ácidos nucleicos presentes no ambiente representa uma inovação no monitoramento de doenças e preservação ambiental.

Cada ser vivo deixa vestígios tangíveis no ambiente – pólen, pele, pelo, entre outros – que contêm nosso código genético, o DNA, e o RNA, ácidos nucleicos fundamentais na transmissão de informações genéticas. Esses ácidos nucleicos presentes nos vestígios são elos informacionais de quem os deixou, e são chamados de DNA e RNA ambiental. A tecnologia de obtenção desses dados genéticos têm potencial de mudar a preservação dos ecossistemas e a prevenção de surtos de doenças como a dengue e a COVID-19

 O DNA, presente em cada ser vivo, é um notável portador de informações, transmitindo e armazenando as características únicas de cada organismo. O DNA, guardado no interior de nossas células, pode ser resgatado a partir dos vestígios que espalhamos pelo ambiente. Essa amostra resgatada do ambiente pode conter vários códigos genéticos de diversos organismos e se chama DNA ambiental, conhecido em inglês como environmental DNA (e-DNA).


O DNA ambiental pode identificar toda a diversidade biológica dessa imagem, incluindo as que não conseguimos ver. #ParaTodosVerem: fotografia mostrando uma variedade de animais da savana africana. No primeiro plano, há um grupo de antílopes com seus chifres característicos. No meio da imagem, um leão caminha majestosamente, cercado por gnus que observam atentos. Ao fundo, é possível ver um grupo de girafas imponentes. A paisagem é árida, com vegetação esparsa, representando o ambiente típico da savana. A diversidade de espécies visíveis na imagem pode ser identificada pelo DNA ambiental (e-DNA) com os vestígios deles no ambiente. Fauna Africana. Fonte: Pixabay, 2024.

Desde seu surgimento em 2008 como ferramenta de pesquisa em macroecologia, o e-DNA tem despertado interesse crescente, refletido no aumento significativo de artigos publicados e patentes registradas em todo o mundo. Essa inovação não apenas tem implicações profundas na ecologia, permitindo a compreensão mais abrangente da biodiversidade, mas também demonstra sua utilidade em setores como a medicina, no monitoramento de doenças, por exemplo.

Aumento de publicações sobre DNA ambiental (e-DNA) e metabarcoding (ferramenta usada para medir biodiversidade, identificando diferentes DNAs na mesma amostra). #ParaTodosVerem: Gráfico de barras onde o eixo Y representa o número de publicações encontradas sobre metabarcoding e DNA ambiental  no Web of Science; o eixo X mostra espaço temporal de janeiro de 2012 a dezembro de 2023. O gráfico mostra um crescimento gradativo e constante, de 2012 a 2022, das publicações sobre metabarcoding e DNA ambiental, com uma pequena queda em 2023. Fonte: Gráfico gerado pelo site Web of Science.

Potencial do e-DNA na conservação ambiental

Então, surge a pergunta crucial: por que esses vestígios genéticos são tão importantes? A resposta reside na riqueza de informações que esses vestígios podem proporcionar sobre ecossistemas complexos, muitas vezes desafiadores de monitorar diretamente. A facilidade de obtenção dessas informações, como a partir de uma simples amostra de água, torna a análise do e-DNA uma ferramenta valiosa para compreender a biodiversidade local. Além disso, esse método não invasivo oferece uma abordagem eficiente e respeitosa do meio ambiente.

 Conceito de biodiversidade, ilustrando a diversidade de espécies na mata atlântica, que pode ser estudada por meio do e-DNA. Mesmo sem a presença física dos animais, os vestígios deixados por eles no ambiente podem fornecer informações valiosas sobre a biodiversidade local. #ParaTodosVerem: fotografia mostrando uma densa mata atlântica. O cenário apresenta uma vasta cobertura verde, com árvores de diferentes alturas e espécies. Ao fundo, é possível ver montanhas cobertas de vegetação, destacando a biodiversidade e a riqueza ecológica da região. Fonte: Canva, 2024. 

Trabalhos brasileiros, como o realizado por Carla Martins Lopes com anuros na Mata Atlântica, ambiente tropical megadiverso, exemplificam a aplicação do e-DNA em estudos de biodiversidade. O aumento global de declínios e extinções desafia os conservacionistas a acompanhar esse ritmo. Nesse contexto, eles buscaram vestígios de 30 espécies-alvo de anfíbios na Mata Atlântica. Os resultados revelaram a detecção bem-sucedida de espécies em declínio, desaparecidas localmente, e até mesmo uma espécie não vista desde 1968. 

Esses dados respaldam a aplicação potencial do e-DNA na biologia de conservação, contribuindo para avaliações mais precisas da persistência e distribuição de espécies ameaçadas. A análise do e-DNA também ajuda a  aprimorar a precisão das listas vermelhas, especialmente para aquelas espécies não detectadas por métodos tradicionais.

Nesse estudo, foi utilizado o metabarcoding, que possibilita a identificação simultânea de múltiplos organismos a partir da análise de uma amostra de e-DNA obtida do meio ambiente, ao passo que o barcoding foca na identificação específica de uma única espécie. Ambas as técnicas utilizam primers, fragmentos de DNA complementares ao DNA das espécies, selecionando as sequências-alvo para iniciar a PCR, técnica usada para amplificar o DNA para análises subsequentes. 

Um universo de inovações e desafios

Devemos reconhecer também que o uso do eDNA enfrenta desafios importantes, incluindo a dificuldade em detectar algumas espécies, quantificar com precisão sua abundância, atribuir corretamente a informação genética à espécie correspondente e lidar com mudanças ao longo do tempo e espaço devido à resiliência do DNA no ambiente. Além disso, a análise de dados e a interpretação das informações coletadas podem ser complexas. Esses obstáculos ressaltam a importância contínua de aprimorar as técnicas dependentes do e-DNA para garantir resultados confiáveis em diferentes situações e ambientes.

Um dos problemas mais recorrentes para a aplicação do e-DNA é o tempo que o DNA consegue ficar estável no ambiente. Esse erro pode gerar resultados incorretos, como a detecção de seres vivos que não se encontram mais no ambiente. Uma forma de resolver esse problema foi utilizando o e-RNA, que tem um tempo de permanência muito inferior ao DNA.

Avanços na saúde pública

O advento do uso do e-RNA tornou possível o monitoramento de patógenos como o SARS-CoV, vírus de RNA causador da Covid-19. A partir  de coletas de e-DNA de amostras de água, esgoto, e até mesmo do ar ou de superfícies, a identificação da doença em hospitais poderá ter um controle bem mais preciso. 

Rua em uma cidade asiática. #ParaTodosVerem: fotografia de uma rua de uma cidade chinesa lotada de pessoas, com lojas em prédios de arquitetura oriental, ameaçados por um grande vírus na cor verde no alto da imagem infectando a todos que caminham calmamente.  Fonte: Pixabay, 2024.

 Recentemente, a publicação da patente “Detection of Infectious Agents from Environmental Air Dust“, em 2024, marcou uma tendência de inovação de amplo potencial no monitoramento de patógenos. Essa técnica permite a coleta e análise de poeira ambiental (EAD) em ambientes ventilados individualmente para detectar agentes infecciosos. Ao identificar ácidos nucleicos, como RNA e/ou DNA, essa abordagem proporciona o controle mais preciso de doenças. 

A capacidade de analisar a amostra EAD junto com outros tipos de amostras, como pellets fecais, cotonetes orais, cotonetes corporais e tecidos, aprimora significativamente a detecção de organismos em baixas concentrações. Essa inovação representa uma promissora ferramenta para a vigilância em ambientes críticos, como hospitais. 

No Brasil, essas técnicas podem oferecer uma nova visão sobre como lidar com o controle e detecção de arboviroses como dengue, chikungunya e zika por meio do melhor monitoramento e conhecimento dos hábitos dos seus transmissores. Atualmente, a detecção dessas doenças é baseada em métodos tradicionais, como armadilhas para os diferentes estágios dos mosquitos transmissores. O uso de metabarcoding do e-DNA poderia gerar informações muito mais complexas e detalhadas, facilitando o trabalho dos agentes de saúde. Mas essas técnicas ainda estão se desenvolvendo, e seu potencial hoje funcionaria de forma integrada e complementar às técnicas tradicionais.

e-DNA e e-RNA: faça parte dessa jornada!

Ao explorarmos a pesquisa do e-DNA, entramos em um universo de descobertas, desafios e soluções. Desde 2008, o e-DNA despertou crescente interesse, refletido no aumento de artigos e patentes. Embora essa inovação enfrente desafios, novas técnicas, como o uso do e-RNA, emergem e estão sendo pesquisadas, prometendo avanços significativos. Este é um campo dinâmico, em que descobertas constantes estão moldando o futuro da pesquisa e conservação da biodiversidade, oferecendo uma visão instigante do potencial inexplorado dos ácidos nucleicos ambientais. 

Além disso, o rastreamento de doenças como dengue e COVID-19 por meio do e-RNA tem se mostrado uma ferramenta potencialmente inovadora na prevenção e controle dessas enfermidades. Há muito mais conteúdo e informações sobre o tema para pesquisar e se aprofundar, e,  neste texto, apenas começamos a aguçar sua curiosidade. Vale a pena nos aprofundarmos nessas novas possibilidades!

Perfil de Rogério Leal

Texto revisado por Bruna Lopes e Elaine Latocheski

Cite este artigo:
LEAL, R. e-DNA: desvendando a COVID, dengue e o meio ambiente. Revista Blog do Profissão Biotec, v. 11, 2024. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/e-dna-desvendando-a-covid-dengue-e-o-meio-ambiente/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências:

BJØRNSGAARD AAS, Anders; DAVEY, Marie Louise; KAUSERUD, Håvard. ITS all right mama: investigating the formation of chimeric sequences in the ITS 2 region by DNA metabarcoding analyses of fungal mock communities of different complexities. Molecular Ecology Resources, v. 17, n. 4, p. 730-741, 2017.
GUTIÉRREZ-LÓPEZ, Rafael et al. Monitoring mosquito richness in an understudied area: can environmental DNA metabarcoding be a complementary approach to adult trapping?. Bulletin of Entomological Research, v. 113, n. 4, p. 456-468, 2023.
HENDERSON KENNETH S et al.. Detection of infectious agents from environmental air dust. Depositante: CHARLES RIVER LABORATORIES INT INC. n. 4296374 aplicação: 01.06.2016 conceção: 27.12.2023.
LITTLEFAIR, Joanne E. et al. Air-quality networks collect environmental DNA with the potential to measure biodiversity at continental scales. Current Biology, v. 33, n. 11, p. R426-R428, 2023.
LOPES, Carla Martins et al. Lost and found: Frogs in a biodiversity hotspot rediscovered with environmental DNA. Molecular Ecology, v. 30, n. 13, p. 3289-3298, 2021.
PATENTSCOPE (WIPO). www.patentscope.wipo.int/
RISHAN, Sakib Tahmid; KLINE, Richard J.; RAHMAN, Md Saydur. New prospects of environmental RNA metabarcoding research in biological diversity, ecotoxicological monitoring, and detection of COVID-19: a critical review. Environmental Science and Pollution Research, p. 1-22, 2024.
SIVASINGHAM, Arthiyan et al. Detection of preimaginal forms of dengue vectors from environmental samples in Jaffna city, northern Sri Lanka: an eDNA-based approach. Ceylon Journal of Science, v. 52, n. 2, 2023.
Web of Science – Coleção Principal (Clarivate Analytics). www.webofscience.com

Inscrever-se
Notificar de
guest
0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Sobre Nós

O Profissão Biotec é um coletivo de pessoas com um só propósito: apresentar o profissional de biotecnologia ao mundo. Somos formados por profissionais e estudantes voluntários atuantes nos diferentes ramos da biotecnologia em todos os cantos do Brasil e até mesmo espalhados pelo mundo.

Recentes

Assine nossa newsletter

Ao clicar no botão, você está aceitando receber nossas comunicações.