O controle biológico é amplamente empregado na agricultura. Mas você sabia que existe uma infinidade de aplicações que vão além desse campo (literalmente)?
Neste texto, abordaremos quatro casos de controle biológico, cujos protagonistas são bactérias e leveduras. Para começar: você sabe o que é e de onde vem o controle biológico?
É uma técnica que utiliza meios naturais, criada para diminuir a população de organismos considerados pragas. Uma das coisas mais fascinantes da biotecnologia é o olhar sobre os fenômenos da natureza, que é muito rica e presenteia esse olhar com interações fascinantes. O papel do biotecnologista, então, é pensar: de que forma esse fenômeno natural poderia ser aplicado em benefício dos seres humanos e do ambiente? Pessoalmente falando, esse é um papel maravilhoso!
Voltando ao controle biológico: no microuniverso em que se encontram os micro-organismos, é travada uma batalha constante por alimento, por melhor espaço e pelo sucesso geral de cada espécie. Essas “minibatalhas” nos apresentam algumas interações de confronto entre micro-organismos, e de micro-organismos com outras formas de vida. Por que não utilizar esses “microguerreiros” para lutar em favor de uma aplicação biotecnológica?
Caso 1: Controle biológico voador
Os mosquitos viraram alvo de diversas pesquisas, principalmente para controle dos vírus transmitidos por eles. Diversos estudos focam na modificação destes organismos em si, como os mosquitos transgênicos Aedes do Bem™ da Oxitec, liberados para teste em alguns locais do Brasil. O controle biológico, por outro lado, aparece como uma alternativa ao processo de modificação genética: É aqui que entra uma bactéria na história.
Wolbachia é um gênero de bactérias que sobrevivem apenas dentro das células de alguns insetos, em simbiose. Trata-se de um caso de herança materna, ou seja, uma prole de mosquitos herdará a mesma linhagem de Wolbachia intracelular da mosquito fêmea. Essa bactéria possui armas egoístas para lutar pelo sucesso da sua população, como mecanismos de indução de incompatibilidade citoplasmática. Quando o macho carrega uma linhagem de Wolbachia diferente daquela carregada pela fêmea, no momento da fecundação é gerado um embrião inviável, incapaz de se desenvolver. Por outro lado, quando encontra um macho com a mesma linhagem de Wolbachia nas suas células germinativas, a reprodução acontece normalmente e as Wolbachias-filhas são passadas adiante com sucesso, em simbiose dentro das células do embrião que se tornará um novo mosquito.
A estratégia, então, é não gerar descendentes que multipliquem as Wolbachias diferentes do macho, tornando a prole inviável. Mas como isso é utilizado no controle biológico?
Uma iniciativa chamada MosquitoMate, recentemente aprovada pela Agência de Proteção Ambiental americana (Environmental Protection Agency – EPA), cria mosquitos Aedes albopictus em laboratório, separa os machos das fêmeas e contamina os machos com a bactéria Wolbachia pipentis, diferente daquela presente nas fêmeas da região. Ao serem liberados na natureza, os machos (que não possuem o hábito de picar) tentam se reproduzir, mas não conseguem… O cruzamento enfrenta incompatibilidade citoplasmática e a prole é inviável, interrompendo o ciclo de reprodução do mosquito e reduzindo a sua proliferação! Seria esse o fim do uso de inseticidas químicos e também uma alternativa mais simples do que alteração genética de mosquitos?
Caso 2: Controle biológico alcoólico
As leveduras colonizam substratos em decomposição. Então, é esperado que, para o sucesso da multiplicação de uma espécie de levedura, haja algum mecanismo que confira vantagem durante os estágios iniciais do crescimento populacional. Quem se multiplicar mais rápido povoa com mais representatividade o ambiente.
Saccharomyces é um gênero de levedura bastante encontrado em frutas em decomposição. É o ambiente perfeito para elas… e para uma quantidade imensa de outras leveduras, também. Mas a Saccharomyces não é uma levedura de muitos amigos, já que ela é uma assassina. Algumas leveduras carregam um plasmídio de dupla-fita de RNA (dsRNA), que codifica uma proteína killer letal às leveduras sensíveis, por desestabilizar a parede celular delas. Leveduras que carregam o mesmo tipo de plasmídeo de dsRNA são resistentes às toxinas das outras. Também existem as leveduras neutras, que não produzem toxinas killer mas que são resistentes às toxinas produzidas por outras leveduras.
Como o fenômeno killer pode ser aplicado na biotecnologia é a melhor parte! As leveduras killer são utilizadas para inocular tanques de vinho! Elas iniciam a fermentação mais rápido e produzem toxinas killer com efeito antagônico sobre a população de outros micro-organismos sensíveis, inibindo organismos contaminantes que produziriam compostos indesejáveis ao sabor da bebida!
Caso 3: Controle biológico agrícola
O efeito das toxinas killer, que explicamos no caso anterior, pode ser estendido a outras aplicações também. Por ser uma proteína, é possível expressar a sua região codificadora em outros organismos de interesse. Além de desestabilizar a parede celular de outras leveduras, foi descoberto que essas toxinas também possuem atividade antifúngica e inseticida, em alguns casos. Em 1995, essas duas ideias foram unidas, com a expressão de uma toxina killer em tabaco e em milho, para evitar a infecção dessas plantas por fungos fitopatogênicos!
Caso 4: Controle biológico pós-colheita
Daí em diante, você já pode imaginar a infinidade de outras aplicações de leveduras killer no controle biológico de fungos. Sabe quando aquele morango maravilhoso aparece no outro dia com “cabelos brancos”? Quem cresceu ali foi o fungo Botrytis cinerea. E aquela maçã que fica contaminada de verde? É o Penicillium expansum fazendo um banquete. Com a aspersão de leveduras killer diretamente em frutos pós-colheita, a sua superfície é colonizada por essas leveduras, inibindo o crescimento de fungos como Botrytis e Penicillium!
A partir de agora, pode ser que você jamais olhe para o mundo microscópico da mesma forma que antes. O que pode parecer apenas um fruto estragado esconde, na verdade, uma disputa de micro-organismos pela sobrevivência da própria espécie. E qual o papel do biotecnologista? Usar o seu olhar sobre os fenômenos da natureza para criar biotecnologias que nos beneficiem a partir da aplicação dessa batalha microscópica.
Referências:
LEPAGE, Daniel P. et al. Prophage WO genes recapitulate and enhance Wolbachia-induced cytoplasmic incompatibility. Nature, v. 543, n. 7644, p. 243-247, 2017.
SCHMITT, Manfred J.; BREINIG, Frank. The viral killer system in yeast: from molecular biology to application. FEMS microbiology reviews, v. 26, n. 3, p. 257-276, 2002.
STARMER, William T. et al. The ecological role of killer yeasts in natural communities of yeasts. Canadian Journal of Microbiology, v. 33, n. 9, p. 783-796, 1987.
WALTZ, Emily. US government approves’ killer’mosquitoes to fight disease. Nature News. Disponível em: <https://www.nature.com/news/us-government-approves-killer-mosquitoes-to-fight-disease-1.22959>. Acesso em: 01 dez. 2017.
WISNIEWSKI, Michael et al. Mode of action of the postharvest biocontrol yeast, Pichia guilliermondii. I. Characterization of attachment to Botrytis cinerea. Physiological and Molecular Plant Pathology, v. 39, n. 4, p. 245-258, 1991.