Nos últimos anos, a discussão sobre o uso de animais em testes e pesquisas ganhou grande visibilidade. Muitas pessoas se perguntam: “Por que os cientistas ainda utilizam animais em experimentos e pesquisas?” ou “Por que não substituímos todos os testes em animais por métodos alternativos?”
Esses questionamentos são válidos e coerentes. Mas infelizmente a ciência ainda não pode substituir a experimentação animal por métodos alternativos em todas as situações. Neste texto, apresentamos exemplos de pesquisas que necessitam do uso de animais e quais os órgãos e legislações que regulamentam a experimentação animal no Brasil, garantindo o bem-estar animal e a ética na pesquisa.
Experimentação animal: certo ou errado?
O uso de animais em pesquisas é relatado desde a Antiguidade. Inicialmente não existiam regras ou legislações para essa utilização. Mas ao longo do tempo, foi ficando cada vez mais evidente que a ética e o bem-estar animal deveriam ser prioridades, e que qualquer pesquisador que utiliza animais precisa seguir regras e legislações que priorizem o bem-estar animal para ter seus resultados aceitos. Por isso, hoje a grande questão não é se “a experimentação animal é certa ou errada?” mas sim “quando ela é necessária?” e “que regras ela deve seguir?”.
Porque ainda usamos animais em pesquisas científicas?
A resposta é: porque alguns estudos precisam de respostas fisiológicas que ainda não são respondidas pelos métodos alternativos!
Seria perfeito se pudéssemos substituir toda a experimentação animal por métodos alternativos como os testes in vitro, os organóides, sistemas microfluídicos (organ-on-a-chip) ou testes in silico (simulação computacional). No Brasil, em 2012, foi criada a Rede Nacional de Métodos Alternativos (RENAMA), com o objetivo de estimular o uso desses métodos alternativos. Em alguns testes, como os realizados em cosméticos, produtos de higiene pessoal e limpeza, essa substituição já é possível e determinada pela legislação.
Mas essa não é uma escolha pessoal do cientista e sim uma necessidade da pesquisa. Cada pesquisa tem suas peculiaridades que definem se é possível ou não substituir o uso de animais. A maioria das pesquisas que investigam mecanismos ou respostas fisiológicas não podem ser avaliadas em modelos isolados, sem interação entre diferentes tipos celulares.
Conceito dos 3R´s
Evitar a dor/sofrimento em seres sencientes é indispensável em qualquer pesquisa a fim de manter o bem estar animal. Além disso, os animais são a parte mais importante de uma pesquisa e o seu bem-estar é fundamental para obtenção de resultados confiáveis, reprodutíveis e corretos. O estresse e a dor causam alterações fisiológicas e comportamentais nos animais que afetam diretamente os resultados da pesquisa e por isso devem ser evitados e minimizados a todo custo.
Em 1959, os pesquisadores William Russel e Rex Burch iniciaram um movimento para proteção animal, e a partir dele foi estabelecido o conceito dos 3R´s: Reduction (Redução – reduzir ao máximo o número de animais usados nos experimentos); Refinement (Refinamento – minimizar a dor e o estresse durante todo o experimento) e Replacement (Substituição – sempre que possível substituir o uso de animais por métodos alternativos). Desde então, toda experimentação animal deve ser baseada nesse conceito.
Pesquisas que ainda precisam da experimentação animal
Listamos abaixo alguns exemplos de pesquisas em que ainda não é possível substituir o uso de animais.
– Desenvolvimento de vacinas ou medicamentos: Parte dos testes pré-clínicos realizados na pesquisa sobre uma vacina ou medicamento precisam ser realizadas em animais para avaliação dos efeitos fisiológicos gerais, dos possíveis efeitos colaterais e da segurança/eficácia. Por exemplo, um medicamento para uma doença neurológica pode ter efeitos em outros sistemas como o renal ou cardíaco. Qualquer substância, ao ser introduzida no nosso organismo, pode interagir com diferentes tipos celulares, gerando diferentes efeitos, em diferentes tecidos. E esses efeitos só podem ser observados/estudados em um organismo vivo, onde exista a interação entre diferentes tecidos e células.
– Estudos de programação metabólica: Nesse tipo de estudo, os pesquisadores avaliam como alterações durante a gestação ou lactação influenciam o desenvolvimento da prole (filhotes). Foram estudos como esse que identificaram, por exemplo, que o aleitamento materno até os 6 meses de idade é fundamental para o adequado desenvolvimento da prole. Atualmente, é impossível mimetizar os períodos de gestação ou lactação in vitro!
– Estudos transgeracionais ou epigenéticos: Nesses estudos são avaliados se uma determinada característica é transmitida de geração em geração. Em roedores (modelos mais utilizados na experimentação animal), a gestação dura em média 25 dias, e aos 60 dias de vida (em média) os animais já estão em idade reprodutiva e podem originar uma nova geração. Ou seja, no período de 1 ano podemos avaliar diversas gerações! Mas imagine como seria difícil realizar essa mesma análise em humanos: considerando que a gestação dura 9 meses e que os humanos chegam à idade reprodutiva por volta dos 20-25 anos, quantas décadas precisaríamos para completar um estudo?
– Avaliação de toxicidade reprodutiva (reprotox) e carcinogênese: Os estudos reprotox e de carcinogenicidade indicam se a substância/droga/medicamento avaliado interfere de alguma forma na reprodução de mamíferos (tanto machos quanto fêmeas) ou no desenvolvimento de tumores, respectivamente. Dessa forma é possível estabelecer as doses e tempos de exposição mais seguros, evitando efeitos colaterais prejudiciais à saúde humana.
A experimentação animal e a legislação brasileira
Uma vez que a pesquisa científica precisa ser realizada em um modelo animal, o pesquisador deve seguir a legislação brasileira para a realização de todas as etapas do estudo. É totalmente proibido submeter o animal a situações de dor, sofrimento e estresse, em qualquer etapa da pesquisa científica. E o Brasil possui legislações e instituições competentes que garantem que as pesquisas sejam realizadas de forma responsável e ética.
Lei Arouca: No Brasil, a Lei Arouca (Lei 11794/2008) rege o uso de animais vertebrados para ensino e pesquisa e estabeleceu a criação do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA). De acordo com a lei, a pesquisa deve minimizar a dor e as consequências negativas, sempre priorizando o bem-estar animal.
Resolução CONCEA/Ministério da Ciência,Tecnologia e Inovação nº49, de 07 de maio de 2021: Estabeleceu que somente pessoas capacitadas com cursos reconhecidos podem manipular animais em biotérios e laboratórios.
Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio): órgão que regulamenta a utilização de organismo geneticamente modificado (OGM) e estabelece todas as normas que devem ser seguidas para a experimentação animal com OGMs.
Comissão Ética do Uso de Animais (CEUA): Cada instituição de pesquisa/ensino possui a sua CEUA, que é responsável por autorizar e fiscalizar toda a experimentação animal na instituição. Dessa forma, um pesquisador que deseja iniciar um estudo com animais precisa elaborar um projeto e submetê-lo para aprovação na CEUA. A tabela abaixo contém algumas das informações que precisam ser detalhadas para a CEUA.
Tabela. Informações que devem ser submetidas a CEUA.
A CEUA avalia a relação custo (sofrimento animal) versus benefício (qual a relevância dos resultados da pesquisa), sempre considerando que em qualquer pesquisa existem fatores que impactam a qualidade de vida do animal, seja por sua manipulação ou pelo fato do animal viver em um habitat não natural. Após avaliação da CEUA, se todas as justificativas estiverem de acordo com a legislação e o conceito dos 3R´s, o projeto é autorizado. Ainda assim, a CEUA continua avaliando o desenvolvimento da pesquisa e pode suspender essa autorização a qualquer momento caso alguma regra seja descumprida.
Seguir as normas da CEUA e a legislação vigente não é uma opção do pesquisador e sim um dever! A legislação brasileira prevê pena de reclusão, multa ou suspensão das atividades de pesquisa, de acordo com a infração cometida.
Toda pesquisa depende do bem-estar animal
Usar animais em alguns tipos de pesquisas ainda é uma necessidade, mas manter o seu bem-estar é uma obrigação dos pesquisadores e da instituição! Ao contrário do que muitos pensam, um biotério não é sinônimo de sofrimento ou estresse animal. Não é e nem pode ser!
É importante que todos nós estejamos atentos aos direitos dos animais e a manutenção do seu bem-estar, mas também é fundamental compreendermos que grande parte dos avanços científicos ainda dependem da experimentação animal. Quando realizada com respeito, ética e responsabilidade, a experimentação animal traz benefícios incontestáveis para a ciência e para a sociedade.
Trata-se de um conflito ético e que precisa ser enfrentado com equilíbrio e respeito: aos animais e à ciência.
Cite este artigo:
LOPES, B. P. Ética na experimentação animal: porque ainda usamos animais em pesquisas científicas? Revista Blog do Profissão Biotec, v.8, 2021. Disponível em:<https://profissaobiotec.com.br/etica-experimentacao-animal-porque-ainda-usamos-animais/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências:
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Dittrich N, Pires GN, Tufik S, Andersen ML. Conhecimento sobre a bioética e a Lei 11.794/2008 na graduação. Rev. Bioét. vol.27 no.3 Brasília, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/k7LFzgdPvC5QgrYrc36VrrC/abstract/?lang=es Acesso em: 25 de agosto de 2021.
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Paiva, FP., Maffili VV., Santos, ACS. Curso de Manipulação de Animais de Laboratório. Fundação Oswaldo Cruz – Bahia, 2005. Disponível em: http://www.bioteriocentral.ufc.br/arquivos/apostilha_manipulacao.pdf. Acesso em: 25 de agosto de 2021.
Fonte da imagem destacada: Biotério Central – UFSC,