Imagine uma panela com água fervente. Sabemos que, ao atingir 100ºC, a água começa a transitar do estado líquido para o estado gasoso (ou seja, atinge seu ponto de ebulição) e borbulha violentamente na panela; um ambiente caótico, no mínimo. Agora, imagine viver nesse ambiente!
Em contraste ao capítulo anterior, este discutirá os microrganismos que, não apenas sobrevivem, mas que precisam de ambientes com altas temperaturas para viver: os termófilos. Do grego “amantes de calor”, estes organismos são altamente adaptados para suportar temperaturas muito acima de 50ºC, e possuem características com potencial biotecnológico sublime.
Sobre os efeitos de temperaturas elevadas
Voltemos à ideia da panela com água fervente. As moléculas de água adquirem muita energia térmica, na forma de calor, da chama que está aquecendo a panela. Essa transferência de energia faz com que os átomos das moléculas vibrem e se movam rapidamente, aumentando a sua temperatura. E, da mesma forma que a chama transferiu calor para a água, ela pode propagar a energia para outro objeto ou organismo.
Em tal condição, a transferência de calor resultará na alteração estrutural de macromoléculas essenciais, e pode comprometer o funcionamento adequado da célula. No caso da membrana celular, a temperatura elevada intensifica sua fluidez e permeabilidade, o que prejudica a integridade física da membrana. A agitação das moléculas de água também ocasiona desnaturação de proteínas, ou seja, perda da estrutura nativa e, consequentemente, função proteica.
Já os microrganismos termófilos são preparados, graças a uma série de adaptações fisiológicas, para lidar com a elevada e danosa energia térmica de um ambiente de alta temperatura. Vejamos como eles fazem isso.
Microrganismos termófilos
Conceitualmente, os termófilos são organismos cuja temperatura ótima de crescimento é de 50ºC ou mais. O microrganismo com a temperatura recorde é uma arquea, Methanopyrus kandleri, que sobrevive em locais com até 122ºC. Em tal caso, usa-se o termo hipertermófilo.
Vale notar que os extremófilos são ubíquos, ou seja, presentes em todos os domínios da vida, mas os termófilos são melhor representados por bactérias e arqueas. Existem eucariotos capazes de sobreviver em elevadas temperaturas, mas eles se restringem a fungos com limite máximo de crescimento em 60ºC.
Como mencionado anteriormente, os microrganismos termófilos são adaptados para sobreviver em habitats causadores de estresse por calor. Eles adquiriram uma série de características responsáveis por aumentar a termoestabilidade, integridade e funcionalidade das moléculas celulares.
Em relação às proteínas, elas apresentam alterações que abrangem todos os níveis estruturais, para diminuir a flexibilidade da molécula e impedir a desnaturação. A sequência proteica primária tem maior composição de aminoácidos hidrofóbicos, que não interagem com a água. Além disso, interações hidrofóbicas, iônicas e pontes de sulfeto entre os aminoácidos intracadeia estabilizam as estruturas secundárias e terciária/tridimensional, enquanto ligações intercadeia mantém a estrutura quaternária (interação de subunidades).
O DNA de termófilos também pode ser diferenciado e apresentar maior conteúdo das bases nitrogenadas guanina (G) e citosina (C). A ligação GC acarreta em maior termoestabilidade do material genético desses organismos, e facilita a sobrevivência em altas temperaturas.
Por fim, uma das principais adaptações dos termófilos está na membrana celular, que possui uma composição lipídica provedora de ordem e estabilidade para manter a membrana intacta. Exemplos de modificações são: cadeias de ácido graxo ramificadas e com ligações éter, a fim de diminuir a motilidade das moléculas.
Um dos exemplos mais notáveis de extremófilos úteis para a ciência é a bactéria Thermos aquaticus, isolada de uma fonte termal do parque Yellowstone, Estados Unidos. Além dela, existe uma grande variedade de outros termófilos, especialmente no domínio das bactérias, como a Thermodesulfotobacterium commune, a Aquifex pyrophilus e cianobactérias do gênero Synechococcus; e também das arqueas, como a Geothermobacterium ferrireducens, a Aeropyrum pernix e a Sulfolobus solfataricus.
Aplicações biotecnológicas dos extremófilos termófilos
Após entender as adaptações dos termófilos, vamos conhecer as potenciais aplicações desses microrganismos; e que potencial! Primeiramente, não poderíamos deixar de comentar sobre a Reação em Cadeia da Polimerase (PCR), em que fragmentos de DNA são amplificados em escala logarítmica em poucas horas. Essa técnica de biologia molecular é de suma importância para a biotecnologia, pois possui alta praticidade e eficiência graças à enzima termoestável adaptada da T. aquaticus, bactéria extremófila.
Além da PCR, outras aplicações também são possíveis, como as enzimas termoestáveis, chamadas termozimas, que são produtos de termófilos extremamente úteis e versáteis. Pela capacidade de termozimas se manterem funcionais em altas temperaturas, elas são de grande utilidade para processos industriais que utilizam estas condições. Exemplos pontuais são demonstrados nos seguintes tópicos:
- Biomineração: A extração e processamento de minerais a partir de processos biológicos pode ser aprimorado com a utilização de termófilos com tal habilidade, uma vez que temperaturas maiores podem favorecer e acelerar a técnica de biomineiração.
- Biodegradação: Termozimas capazes de degradar hidrocarbonetos podem ser úteis para a degradação de parafina, cera indesejada no refinamento de óleo bruto do petróleo; desta maneira, a utilização de termófilos substitui produtos tóxicos. Além disso, determinada cepa de bactérias termófilas são capazes de degradar polietileno, plástico considerado inerte.
- Lipídeos: O conhecimento da composição das membranas de termófilos pode aprimorar sistemas de entrega de fármacos ou genes por lipossomos, pelo fato de possuírem uma composição estrutural característica e que confere estabilidade e resistência.
Estes são apenas alguns exemplos da aplicabilidade de microrganismos termófilos, com certeza não é tudo que eles têm a nos ensinar. A partir de mais estudos focados em diferentes espécies de extremófilos, é provável que mais produtos surjam e aprimorem tanto processos industriais quanto de pesquisa e ciência básica.
Cite este artigo:
FRANCA, L. V. Extremófilos Termófilos. Revista Blog do Profissão Biotec. V. 10, 2023. Disponível: <https://profissaobiotec.com.br/extremofilos-termofilos/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
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Fonte da imagem destacada: Maxim Tajer no Unsplash.