A nanotecnologia é um campo emergente e multidisciplinar que, junto à Biotecnologia, vem trazendo inovações na pesquisa e no desenvolvimento de produtos de grande importância para a saúde humana. No setor de pesquisa e produção de vacinas, o uso da nanotecnologia deu origem ao termo “nanovacinologia” para se referir ao desenvolvimento das chamadas nanovacinas.
Entre tantos termos com “nano”, é importante entendermos o significado de cada um deles. A nanotecnologia é um campo da ciência que estuda a manipulação da matéria em escalas nanométricas, as quais compreendem a medida de átomos e moléculas que geralmente são menores que uma célula. E é a partir dela que é possível criar as nanopartículas, que são estruturas de partículas com um tamanho de 1 a 100 nanômetros (nm).
É a partir das diversas possibilidades de manipulação de pequenas moléculas que está sendo possível trazer o conhecimento nanotecnológico para a produção das nanovacinas. A principal ideia no desenvolvimento das nanovacinas é produzir nanopartículas que sejam capazes de servir como veículo para carregar o antígeno e de serem internalizadas pelas células.
Mas o que as nanovacinas têm de tão interessante em relação às outras vacinas convencionais? As vantagens são várias, como podemos ver abaixo:
- Construir nanopartículas de diferentes tamanhos e formas.
- É possível que a nanopartícula seja internalizada pelas células.
- O antígeno fica protegido no interior ou associado à estrutura da nanopartícula, apresentando maior estabilidade.
- O antígeno encapsulado pode ser liberado aos poucos à medida que a nanopartícula é degradada em nosso organismo.
- É possível fazer um “design” de nanopartículas para entregar o antígeno a células ou tecidos específicos.
- Podem ser utilizadas para a prevenção ou tratamento de doenças.
- É possível utilizar doses mais baixas e reduzir o número de doses.
- Como são sintetizadas in vitro, não precisam passar por uma das etapas mais longas que ocorre com vacinas de vírus inativado, que envolve a criação de vírus em ovos de aves.
- Podem ser atualizadas mais rápido quando um vírus sofre uma nova mutação e carregar vários antígenos de diferentes cepas do vírus.
Como se produz uma nanovacina?
Para se produzir uma nanovacina, é necessário escolher quais os tipos de moléculas (sintéticas ou naturais) irão compor a estrutura da nanopartícula e dar a sua forma. E dependendo da composição escolhida, é possível estudar o melhor meio de combinar o antígeno a essa nanopartícula. Em geral, o antígeno pode ser encapsulado, conjugado, adsorvido ou apenas misturado com a nanopartícula.
É sempre desejável que as nanopartículas sejam biocompatíveis, biodegradáveis e não tóxicas, ou seja, que não apresentem efeitos tóxicos ou provoquem alergias ao serem degradadas no nosso organismo. É importante, também, desmistificar a impressão que o uso do termo nanotecnologia pode gerar no público leigo, ou seja, as nanovacinas não tem relação com a introdução de chips ou nanorobôs em nosso organismo.
Diversos tipos de nanopartículas podem ser utilizadas para a produção de nanovacinas, e vamos comentar algumas dessas que já são utilizadas ou que estão em desenvolvimento.
- Nanovacinas de Nanopartículas de ouro
As nanopartículas de ouro (abreviação em inglês: AuNPs) são bastante utilizadas para carregar antígenos do vírus da gripe e podem funcionar como adjuvantes para potencializar a resposta imunológica durante o processo de imunização. Apesar do ouro ser uma molécula inorgânica (não possui átomos de carbono) e não ser degradada pelo nosso organismo, há estudos que apontam que nanopartículas de ouro não apresentam efeitos tóxicos. Entretanto, deve-se tomar cuidado com o tamanho da nanopartícula e a quantidade de ouro, que podem ter algum efeito nocivo, segundo alguns trabalhos.
Um estudo recente publicado na Nature, que envolve pesquisadores dos EUA, China e Brasil (UFSCAR) demonstrou que o uso de nanopartículas de ouro quiral conseguem aumentar mais de 25% a eficácia das nanovacinas. O que traz a eficiência dessas nanovacinas é o uso da molécula espelhada do ouro na composição da nanopartícula, o que define o termo quiral. Essa forma espelhada consegue aumentar a resposta imunológica da nanovacina. Já se pensa em utilizar essa estratégia para desenvolver vacinas contra o vírus SARS-Cov-2.
- Nanovacinas a partir de lipossomos
Os lipossomos são muito utilizados como nanopartículas que carregam antígenos de vírus, principalmente da gripe. Eles são pequenas vesículas esféricas compostas de lipídeos (fosfolipídeos), bem semelhantes à estrutura das membranas celulares. Os lipossomos podem encapsular antígenos no seu centro e também incorporar proteínas do envelope viral para formar estruturas denominadas virossomos (lipossomos com proteínas virais aderidas). Dois exemplos atuais de nanopartículas de lipossomos que carregam ácidos nucléicos, no caso o mRNA, são as vacinas desenvolvidas para o COVID-19 pelas empresas Pfizer e Moderna e que têm demonstrado eficácia entre 80 e 90% de proteção contra a doença.
A vantagem desse tipo de nanovacina é fazer com que nossas células usem o RNA mensageiro do vírus para produzir o próprio antígeno em quantidades suficientes para induzir o sistema imune a produzir anticorpos, o que pode ser uma alternativa a algumas vacinas convencionais que utilizam todo o vírus inativado
- Nanopartículas parecidas com vírus ou “virus-like particles” (VLPs)
A grande novidade desse tipo de nanopartícula é que ela é composta por proteínas que conseguem se montar automaticamente (moléculas auto montáveis) para formar uma estrutura viral (capsídeo), mas sem conter o material genético do vírus no seu interior. Essa estrutura irá conter o antígeno do vírus-alvo, que pode ser uma proteína com algumas modificações que não irão interferir no reconhecimento das células imunológicas.
Para produzir uma VLP é necessário usar técnicas de Biotecnologia para produzir proteínas recombinantes, as quais irão compor a estrutura similar a do vírus. Nanovacinas de VLPs para a hepatite B e E e para o papilomavírus são exemplos que deram muito certo. No Brasil, desde 2020, pesquisadores da USP estão tentando desenvolver uma nanovacina de VLP contra a COVID-19 utilizando em sua estrutura as proteínas Spike do vírus.
A vantagem é que nanovacinas desse tipo conseguem potencializar a resposta das células imunes, pois contêm uma estrutura muito similar à do vírus, mas que não induz a doença, e podem carregar mais de um antígeno.
- Proteínas automontáveis ou “self-assembled proteins”
Nessa modalidade, a nanopartícula é elaborada pela associação do antígeno a proteínas específicas que formam estruturas esféricas ou tubulares por meio de várias de suas unidades. Essas proteínas também conseguem se montar automaticamente in vitro e são produzidas pelo sistema de produção de proteínas recombinantes, como vimos para os VLPs.
Essa estratégia tem sido estudada por pesquisadores como uma potencial ferramenta para a produção de novas vacinas para a COVID-19, principalmente pela possibilidade de utilizar todas as partes da proteína Spike que são importantes para induzir a resposta imunológica para produção de anticorpos.
O interessante desse tipo de vacina é a possibilidade de elaborar vacinas universais para o vírus da influenza, por exemplo. Toda vez que o vírus sofre uma mutação, é possível produzir uma nanovacina que carrega os diferentes antígenos encontrados nas variantes que já existem e incluir o novo antígeno da nova variante. Já as vacinas de vírus inativado, apresentam apenas o antígeno daquele vírus que está circulando naquele momento
No começo de 2021, um grupo de pesquisadores dos EUA desenvolveu uma nanovacina quadrivalente e universal contra a influenza usando essa mesma abordagem, fazendo o uso de proteínas auto montáveis. A nanovacina contém todas as quatro variantes da proteína hemaglutinina em sua estrutura, as quais são encontradas em quatro diferentes cepas do vírus da gripe.. Os testes realizados em animais demonstraram eficácia similar e até superior às vacinas específicas para cada uma das cepas, o que dá ânimo para futuros testes clínicos em humanos.
Da prevenção ao tratamento de doenças
As nanovacinas podem ser produzidas não somente para a prevenção (profilaxia), mas também para o tratamento de doenças que já acometeram o organismo. Nesse último caso, as nanovacinas terapêuticas podem alterar o curso da doença estimulando o sistema imunológico a aumentar a resposta imune contra antígenos específicos produzidos por exemplo pelas células do câncer ou patógenos que se hospedam em nosso organismo e ocasionam doenças.
Uma vantagem do desenvolvimento dessas nanovacinas é a sua grande especificidade quando se compara com o tratamento farmacêutico convencional. As pesquisas atuais se concentram principalmente no desenvolvimento de nanovacinas para tratar o câncer, doenças autoimunes e o HIV.
É muito interessante vermos que a nanotecnologia possibilita o uso de diversas abordagens para o desenvolvimento de nanovacinas, e que estas têm um enorme potencial para promover melhores respostas imunológicas. Um exemplo claro é o sucesso das vacinas contra a COVID-19, citadas anteriormente, que integraram a novidade do uso de moléculas de RNA mensageiro carreadas por nanopartículas lipossomais. Graças a nanotecnologia, aliada à Biotecnologia, estamos entrando em uma nova era em que as nanovacinas serão cada vez mais utilizadas em prol da saúde humana.
Cite este artigo:
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