Os organóides, obtidos do cultivo celular 3D são uma alternativa para o estudo de doenças e testes de novos medicamentos.

Encontrar modelos para estudar doenças de forma mais fiel ao que acontece em nosso organismo é um desafio dos cientistas. O uso de modelos animais, como camundongos, para investigar o comportamento de determinadas doenças não nos dá uma total fidelidade da representação da fisiologia humana. Sobretudo, muitos experimentos são demorados, caros, demandam manutenção e devem estar dentro das exigências para serem aprovados pelos comitês de ética em experimentação animal.

Em contrapartida, a alternativa do uso de células humanas cultivadas em laboratório para pesquisa e teste de drogas se restringe à linhagens de células de câncer imortalizadas, derivadas de tumores, que podem ser multiplicadas e mantidas in vitro (em laboratório). No entanto, células tumorais não conseguem reproduzir o que ocorre em patologias que atingem outros tecidos e tipos celulares. Isto limita principalmente as etapas de testes clínicos para verificar a eficácia de medicamentos que não sejam específicos para o câncer.

O próprio processo de desenvolvimento e comercialização de novos medicamentos é bastante demorado e requer um custo muito elevado, podendo levar até 10 anos. E estima-se que 90% de todas as novas drogas testadas acabam gerando resultados negativos na triagem clínica. Uma solução atual que pode substituir os modelos e desafios citados anteriormente é o uso de uma técnica moderna que utiliza células do próprio paciente para gerar estruturas biológicas 3D in vitro, os organóides. Eles permitem um estudo mais fiel e rápido de determinada doença, e até a realização de tratamentos personalizados com drogas.

Figura ilustrando modelos utilizados na pesquisa médica com destaque para os organóides.
#ParaTodosVerem: Na primeira imagem superior, células (esféricas em verde) são cultivadas em monocamadas em um recipiente (transparente) contendo meio nutritivo (rosa). Na imagem seguinte está a silhueta de um homem adulto (amarelo), do qual foi retirada uma biópsia (verde) para cultivo em recipiente (transparente) com meio nutritivo (rosa) para gerar um organóide representado pela estrutura esférica (verde) maior que contém diferentes tipos de células em forma alongada (azul, rosa e amarelo). Na última imagem superior, o desenho de um camundongo e um coelho representam os modelos animais de pesquisa. A imagem abaixo ilustra os diferentes tipos de organóides, e sua estrutura 3D, que podem ser obtidos a partir do cultivo de células de variados órgãos: cérebro, copo óptico, orelha interna, pele, pulmão, coração, rim, fígado, pâncreas, estômago, intestino e cólon. Fonte: Modificado de Heydari et al. 2021.

O que é um organóide?

  Um organóide é uma réplica biológica em miniatura da parte de um órgão (~1 milímetro), como por exemplo o tecido epitelial, que apresenta uma estrutura tridimensional (3D). Ele é obtido a partir do cultivo de células in vitro de células-tronco embrionárias (ESCs) ou células-tronco pluripotentes induzidas (iPSCs) que foram derivadas de tecidos adultos já diferenciados.

A técnica de cultivo celular 3D para gerar um organóide foi descoberta por pesquisadores do Instituto Hubrecht (Holanda), em 2009, utilizando células do epitélio intestinal de camundongos. Essas células conseguem voltar ao estado de célula tronco pluripotente quando cultivadas com determinados fatores de crescimento e posteriormente originar alguns tipos celulares que se organizam numa estrutura 3D, mimetizando parte do tecido de origem. 

Essa mesma técnica pode ser utilizada para obter um organóide a partir de uma biópsia retirada de um tecido humano contendo células diferenciadas. E o mais interessante é que as células obtidas diretamente do paciente preservam a configuração genética do indivíduo mesmo quando reprogramadas, incluindo mutações que são responsáveis por várias doenças, o que facilita uma maior fidelidade nos estudos médicos.

Imagens do primeiro estudo que conseguiu gerar um organóide
Imagens do primeiro estudo que conseguiu gerar um organóide. #ParaTodosVerem:  À esquerda(a), uma imagem de microscopia confocal  da estrutura em 3D adotada por células obtidas do epitélio intestinal de camundongos. As regiões coradas em verde representam células com a proteína LGR5, um receptor celular, que é importante para o processo de diferenciação em diferentes tipos celulares. À direita(b), um desenho representativo da estrutura em 3D do organóide intestinal. As células em forma de bastonete (rosa escuro ou verde) formam uma estrutura tridimensional que contém dois domínios (cripta e villus). No interior da estrutura de células está presente uma cavidade interna , o lúmen (rosa claro). Fonte: modificado de Sato et al. 2009.

Além dos organóides serem um modelo que  permite entender como uma doença se comporta em determinado órgão, há a possibilidade de realizar um estudo personalizado para testar qual medicamento é mais adequado para cada paciente. Na pesquisa básica, é também possível utilizá-los para estudar os processos iniciais do desenvolvimento da estrutura de diversos órgãos, sem a necessidade do uso de células tronco embrionárias, as quais apresentam impasses éticos.

Talvez vocês encontrem o uso do termo “mini-órgãos” em alguns veículos de informação no lugar de organóides. Entretanto, a literatura não o considera adequado, pois a técnica em si não gera uma miniatura de um órgão completo funcional ou vascularizado, mas sim apenas uma parte tecidual deste.

Algumas aplicações 

1- Tratamento da fibrose cística e doenças gástricas

A fibrose cística é uma doença genética complexa, que acomete crianças, e apresenta mais de 2000 mutações. O uso de organóides, obtidos principalmente de biópsias do cólon, tem permitido estudar a resposta individual ou coletiva de pacientes em resposta a medicamentos candidatos para tratar a doença. Na Holanda, testes clínicos do medicamento ivacaftor com estes organóides têm possibilitado prever com sucesso como o organismo responde ao tratamento. Além disso, organóides do reto e intestino obtidos de pacientes com mutações raras estão sendo estudados no sentido de permitir um tratamento personalizado futuramente.

Fotomicrografia de organóides cultivados in vitro a partir de biópsias do reto de pacientes saudáveis (figura da esquerda) ou com fibrose cística (figura da direita)
#ParaTodosVerem: Fotomicrografia de organóides cultivados in vitro a partir de biópsias do reto de pacientes saudáveis (figura da esquerda) ou com fibrose cística (figura da direita). Em pacientes saudáveis, as células que compõem os organóides adotam uma estrutura tridimensional onde no seu interior há a presença do lúmen contendo bastante fluído. Já os organóides obtidos de pacientes afetados pela doença praticamente não apresentam o lúmen que fica circundado pela estrutura tridimensional adotada pelas células. Fonte: Noordhoek et al. 2016.

A técnica de edição de genes, CRISPR/Cas9, também já foi utilizada para corrigir uma mutação no gene CFTR em organóides obtidos de células tronco pluripotentes do intestino de pacientes com fibrose cística. Uma das perspectivas futuras é utilizar esses organóides na medicina regenerativa, realizando mini transplantes para o tecido de origem no intuito de tentar resgatar parte de sua funcionalidade ou até substituir o tecido danificado.

Organóides derivados do tecido gástrico também têm permitido identificar novos mecanismos que controlam a formação inicial do endoderma envolvendo o fator transcricional NEUROG3. Ainda, eles estão sendo úteis para estudar patologias gástricas ocasionadas na infecção pela bactéria Helicobacter pylori.

2 – Tratamento de câncer 

Diversas empresas farmacêuticas e de biotecnologia estão elaborando estudos que utilizam organóides tumorais obtidos a partir de tumores para investigar os mecanismos por trás do câncer e propor o desenvolvimento de novos medicamentos. O estudo personalizado pode ser realizado para encontrar meios de tratar pacientes que apresentam diferentes mutações para o mesmo tipo de câncer

O grande desafio é acompanhar a progressão do câncer individual, já que um organóide obtido de um tumor em estado inicial não consegue prever novas mutações que podem ocorrer mais tardiamente nas células tumorais do paciente. Outro desafio é tentar reproduzir um câncer em laboratório de forma mais realista possível, ou seja, estabelecendo suas interações com outros tipos de células. Para isso, alguns centros de pesquisa têm tentado adicionar células imunológicas e do tecido conjuntivo vascularizado às culturas de organóides tumorais para mimetizar um câncer mais real.

Fotomicrografia, a partir de imunofluorescência, de um organóide tumoral obtido a partir de células intestinais contendo a mutação no gene APC que levam ao desenvolvimento de câncer intestinal
Fotomicrografia, a partir de imunofluorescência, de um organóide tumoral obtido a partir de células intestinais contendo a mutação no gene APC que levam ao desenvolvimento de câncer intestinal. #ParaTodosVerem: A estrutura tridimensional do organóide adotada pelas células apresenta as seguintes marcações: em verde está marcada a caderina epitelial, em vermelho as células estão marcadas através da proteína kinase B, em azul está marcado o núcleo das células. Fonte: Abhimanu pandey

3 – Covid-19

Os organóides também foram e estão sendo muito utilizados pelos cientistas para se entender como cada órgão responde à infecção pelo vírus SARS-CoV-2, e na testagem de drogas para o tratamento da doença. Organóides do pulmão, fígado, coração, rins e cérebro são os principais alvos de estudo. A Plataforma Científica Pasteur-USP, colaboração entre a Rede Pasteur e USP, desenvolve um estudo utilizando organóides cerebrais derivados de células tronco obtidas da polpa dentária para entender os danos ocasionados pelo vírus SARS-Cov-2 no sistema nervoso central.

Perspectivas

Trabalhar com uma estrutura celular tridimensional, sem dúvidas, possibilita a  melhor aproximação do que ocorre no órgão estudado. Entretanto, não devemos confundir um organóide como uma réplica totalmente funcional de um órgão ou tecido. Existem diversos tecidos complexos (cerebral, cardíaco e hepático) que são formados por variados tipos celulares e trazem um desafio para a reprodutibilidade a partir de organóides, que ainda não apresentam uma proporção heterogênea de células que reflitam o tecido estudado. E mesmo que conseguíssemos reproduzir um órgão inteiro em laboratório, não teríamos garantia de que ele funcionaria de forma idêntica ao que acontece em nosso corpo. 

É entusiasmante pensar que a utilização dos organóides pode revolucionar a pesquisa médica, sendo uma alternativa ao uso de modelos animais e até para estudar doenças que não apresentam nenhum modelo adequado. E a contribuição da Biotecnologia têm sido essencial para o desenvolvimento e aprimoração dessa técnica promissora. 

Para saber mais sobre outros contextos em que os organóides são aplicados, acesse os textos sobre bioimpressão de tecidos e métodos alternativos ao uso de animais em experimentos, e continue acompanhando os conteúdos do Profissão Biotec.

Perfil de Fabiano
Texto revisado por Jennifer Medrades e Bruna Lopes

Cite este artigo:
ABREU, F. C. P. Organóides: modelos para a pesquisa médica e desenvolvimento de drogas. Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/organoides-modelos-pesquisa-medica-desenvolvimento-drogas/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências

AGENCIA FAPESP. Plataforma Científica Pasteur-USP investiga impactos da COVID-19 no cérebro humano. Disponível em < https://agencia.fapesp.br/plataforma-cientifica-pasteur-usp-investiga-impactos-da-covid-19-no-cerebro-humano/36535/> Acesso em: 11 de setembro de 2022.
BIERNATH, A. Cientistas criam miniórgãos e revolucionam o conhecimento sobre a covid-19. Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/geral-55052560 > Acesso em: 11 de setembro de 2022.
HEYDARI, Zahra et al. Organoids: a novel modality in disease modeling. Bio-design and Manufacturing, v. 4, n. 4, p. 689-716, 2021.
MASCARO, B. O que são organoides? Fatos, curiosidades e suas limitações. Disponível em < https://blog.varsomics.com/o-que-sao-organoides-fatos-curiosidades-e-suas-limitacoes/ > Acesso em: 29 de junho de 2022.
NOORDHOEK, Jacquelien et al. Intestinal organoids and personalized medicine in cystic fibrosis: a successful patient-oriented research collaboration. Current opinion in pulmonary medicine, v. 22, n. 6, p. 610-616, 2016.
PAL, R. Key Applications of Organoids. Disponível em < https://blog.crownbio.com/key-organoid-applications > Acesso em: 2 de junho de 2022.
SATO, Toshiro et al. Single Lgr5 stem cells build crypt-villus structures in vitro without a mesenchymal niche. Nature, v. 459, n. 7244, p. 262-265, 2009.
SCHWANK, Gerald et al. Functional repair of CFTR by CRISPR/Cas9 in intestinal stem cell organoids of cystic fibrosis patients. Cell stem cell, v. 13, n. 6, p. 653-658, 2013.
SUNDARAM, S. The organoid era: Bringing patient-relevant preclinical models to the lab. Disponível em <https://www.labiotech.eu/partner/organoid-era-bringing-patient-relevant-preclinical-models-to-lab/ > Acesso em : 30 de junho de 2022.
Fonte da imagem destacada: Wikimedia.


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