Vacinação: da bancada de laboratório à erradicação de epidemias

A maior parte das pessoas já tomou algumas vacinas na vida, não é? Mas você sabe sobre todos os testes pelos quais esse produto passa até chegar à população? Quantos anos de trabalho são utilizados na sua descoberta, formulação, testes em animais e humanos antes das vacinas estarem prontas para serem aplicadas?

Em 1789, o médico inglês Edward Jenner foi o primeiro a, utilizando um método científico, testar uma forma de vacinação. Nessa época, a varíola era uma grande epidemia e muitas vezes uma doença fatal. Provocada por um vírus, tinha sintomas iniciais semelhantes a uma gripe e, num estágio avançado, causava pústulas na pele. Foi então que Jenner, baseado no conhecimento popular de que pessoas que trabalhavam diretamente com animais que apresentavam uma forma da doença eram imunes à mesma, testou o que seria a primeira vacina da história.

Desenho representando as feridas provocadas pela varíola bovina em humanos. Fonte: Smith, 2011.

A partir da hipótese de que pessoas que entravam em contato com vírus da varíola de vaca se tornavam imunes à versão humana, ele desenhou seu experimento. Primeiramente, Jenner inoculou um garoto de oito anos com material das lesões da doença bovina. Dois meses depois, ele expôs novamente o garoto à doença, agora ao vírus humano. O garoto não desenvolveu nenhum sintoma da doença e o médico concluiu que o paciente tinha se tornado imune. Por causa dessa descoberta, o termo vacina foi cunhado como referência à origem do material de estudo, já que em latim “vaccinae” significa “da vaca” e passou a ser utilizado após uma publicação de Jenner onde ele se referia à doença da varíola usando o termo “Varíola Vaccinae ou, em português, “varíola da vaca”. Em 1980, graças aos esforços da vacinação, a doença foi erradicada em todo o mundo.

De lá para cá, a forma como se testam medicamentos e vacinas mudou completamente. Apesar do teste de Jenner ter sido um sucesso, poderia ter sido fatal para os pacientes e causado muitos transtornos. Esse experimento não teria sido aprovado por nenhum comitê de ética nos dias atuais. Hoje, para a aprovação de uma nova vacina, o produto candidato passa por inúmeras etapas para assegurar sua segurança, eficácia e efetividade. Os experimentos passam por análise de especialistas, comitês de ética e diversos órgãos governamentais. No Brasil, o crivo final para a liberação do produto é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), um dos órgãos mais exigentes do país.

Afinal, que critérios são utilizados e o que esses termos significam?

Quando um novo medicamento ou, no caso, uma nova vacina, começa a ser testada, é preciso estabelecer critérios para que o produto siga para novas etapas e avaliações ou para que seja descartado. É aí que muitos termos técnicos são apresentados. Os principais parâmetros na avaliação de vacinas são a imunogenicidade, a eficácia e a segurança.

O primeiro ponto a ser avaliado normalmente é a imunogenicidade, que é a capacidade daquele fragmento viral ou molécula induzir a produção de anticorpos pelo próprio organismo. É isso que garantirá a proteção do indivíduo contra a doença, e não o composto injetado.

Já a eficácia mede a quantidade de indivíduos (pessoas ou animais) que realmente se tornaram imunes à doença. Por exemplo, se em um grupo de 100 indivíduos vacinados que foram expostos à doença (como Jenner fez com seu paciente), 95 não apresentarem os sintomas, pode-se dizer que a eficácia da vacina é de 95%.

Por último, a avaliação de segurança mede se existem, quais são e a quantidade de efeitos colaterais causados pela vacina na população de estudo.

Para que uma vacina passe por cada uma das fases de testes e entre em distribuição no final de todas as etapas, é preciso que existam dados suficientes que comprovem resultados positivos na avaliação de todas essas características.

Triagem, testes em laboratório e fases clínicas

Degradação de penas pela bactéria Chryseobacterium sp. em 48 h, devido à produção de queratinase. Fonte: Brandelli et al., 2005

Antes da entrada no mercado, milhares de testes são feitos. Primeiro, anos são investidos em pesquisa básica. Para vacinas comuns (aquelas que estão diretamente relacionadas a vírus) é preciso primeiro entender como a doença funciona, qual seu agente causador e como é a reação do organismo ao patógeno. Quando o patógeno já está identificado e devidamente caracterizado, começa a busca por moléculas-alvo. Lembram da imunogenicidade? É aqui que normalmente ela começa a ser avaliada. Um grande número de moléculas, patógenos atenuados e partes virais são avaliados para verificar se eles são capazes de ativar o sistema imunológico do paciente. Com o objetivo de reduzir custos e o número de animais em pesquisa, as substâncias costumam ser avaliadas primeiro utilizando programas computacionais ou testes in vitro.

Depois de escolhidas as substâncias mais promissoras, começam os testes laboratoriais em modelos animais. Essa fase é conhecida como desenvolvimento pré-clínico. No início, o principal objetivo desses testes é verificar a imunogenicidade, mas, após nova triagem, começam a ser avaliadas também a segurança e a eficácia das vacinas nos animais.

Segundo apresentação de um curso de vacinas da Fiocruz, esse processo costuma levar de três a quatro anos. Se os resultados forem promissores, a Anvisa deve ser notificada para que os ensaios clínicos comecem: os primeiros testes em seres humanos.

O órgão irá determinar, por meio de um conselho, como esses testes clínicos irão funcionar, qual o número de voluntários, como serão realizadas as amostragens, quais parâmetros devem ser seguidos…. Enfim, uma nova série de exigências é realizada. Os ensaios clínicos são divididos nas fases I, II e III.

Na fase I, normalmente a vacina é avaliada em um pequeno grupo de pessoas, onde o principal interesse é testar sua segurança e possíveis efeitos colaterais. Na fase II, o número de pessoas aumenta, já sendo possível calcular a eficácia e entender quais são as melhores doses a serem aplicadas. Na fase III, o número de voluntários torna-se bem maior, podendo envolver milhares de pessoas em diversos países. É a etapa final para garantir a segurança da vacina em vários grupos distintos de pessoas, sua eficácia, dosagem e possíveis danos colaterais. Pequenos ajustes finais na composição e formulação também são feitos nessa fase. Esse processo todo leva, em média, dez anos.

Só a partir da aprovação em todos esses testes que a vacina pode ir para o registro e comercialização/distribuição. A Anvisa leva mais uma média de dois anos para essa autorização. Só em testes podemos contabilizar quinze anos para o desenvolvimento de uma vacina! E você achando que ser pesquisador era moleza né?

Fases de um ensaio clínico completo. Fonte: Report Sustentabilidades/Ache

O que acontece depois da aprovação?

    Depois de todos esses testes e da distribuição ao público por clínicas ou por programas de vacinação do Ministério da Saúde, inicia-se a fase de avaliação IV. Trata-se da farmacovigilância.

A farmacovigilância, segundo a Anvisa, é o “processo de detecção, avaliação, compreensão, prevenção e comunicação de eventos adversos pós-vacinação, ou qualquer outro problema relacionado à vacina ou à imunização, com o objetivo de aprimorar o conhecimento da relação benefício/risco destes produtos e minimizar seus efeitos nocivos à população.” Resumindo, é um processo de monitoramento contínuo para identificar possíveis eventos de efeitos colaterais causados na população após a distribuição da vacina. Nesse processo é avaliado se o efeito é realmente decorrente da vacinação, se ele está restrito a uma determinada população ou a um defeito de fabricação.

O órgão regulamentador pode decidir, a qualquer momento, baseado em comprovações científicas, suspender a distribuição no país. Ou seja, mesmo após os inúmeros testes realizados e a aprovação, existe uma grande preocupação, interesse e responsabilidade com relação à segurança das vacinas. Dessa forma, empresas produtoras, distribuidoras e órgãos governamentais buscam a avaliação contínua das nossas vacinas.

São diversos processos de testes rigorosos para a geração de um único produto. Mais de dez anos de estudos para assegurar que grande parte dos possíveis efeitos colaterais foram compreendidos e que o benefício ao se evitar uma doença é muito maior do que eles. Podemos dizer que tudo isso mostra o quão seguro é o processo de vacinação nos dias de hoje e o quanto evoluímos desde os tempos de Jenner. E agora, vai deixar sua carteira de vacinação em dia?

Revisado por Giovanna Sá, Thais Semprebom e Mariana Pereira
Referências
Anvisa, Cartilha de Vacinas. 2003. Disponível em http://portal.anvisa.gov.br/documents/33868/399730/Cartilha+de+vacinas+-+para+quem+quer+mesmo+saber+das+coisas/aa277240-01fc-4baa-8bb7-0edfa4e60c09, acessado em 11 de agosto de 2018.
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http://br.gsk.com/pt-br/pesquisa/como-desenvolvemos-nossos-produtos/como-descobrimos-novas-vacinas/, acessado em 11 de agosto de 2018.
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Stefan Riedel. Edward Jenner and the history of smallpox and vaccination. Proc (Bayl Univ Med Cent). 2005 Jan; 18(1): 21–25. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1200696/ , acessado em 11 de agosto de 2018.

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